19 de agosto de 2020

Todas as primaveras em mim

Todas as primaveras em mim (2019) é o primeiro livro de poemas da cantora, violonista e compositora Deh Mussulini. Publicado pela Editora Luas, editora esta focada em publicações de mulheres (o que preenche uma lacuna no mercado editorial brasileiro, como poucas iniciativas nesse sentido), a obra é uma estreia literária promissora: em uma edição primorosa, em papel couché e com belíssimas ilustrações de Karla Ruas, o livro, dedicado “à primavera das mulheres”, apresenta os poemas divididos em quatro séries: Série Deusas,  Série Eu, Série Natureza e Série Luas. Na primeira série, como o próprio nome indica, questões relativas ao lugar do feminino no mundo são contempladas por meio de alusões e correlações entre deusas de culturas distintas.

No primeiro poema, composto por um único verso singular – “Estarmos humanas é o que nos faz Deusas.” –, anuncia-se, pela linguagem, uma primeira transgressão: o jogo entre os verbos “ser”, “estar” e “fazer” (no sentido de “tornar”) aponta para uma dimensão dúbia do “ser mulher” no mundo, ao mesmo tempo marcada por uma humanidade e, também, perpassada pelo mítico. Nessa série poética, há textos sobre diversas divindades que, por suas características, remetem a olhares e perspectivas diferentes sobre as mulheres, bem como a culturas diferentes – “espiral do fogo”, Amaterasu Omikami, Deusa do Sol japonesa; Yebá Bëlo, deusa indígena criadora dos seres humanos; Artemis, Deusa grega caçadora; Santa Clara, conhecida por ser caridosa, canonizada pela Igreja Católica; e Lilith, deusa da Mesopotâmia, primeira mulher de Adão, criada por Deus junto com ele e que ousou desafiar esse mesmo Deus – dentre outras entidades femininas, como Nanã e Pitonisa. Todas essas referências apontam para uma espécie de árvore genealógica do feminino que remonta a qualidades ancestrais, como a liberdade, qualidades estas presentes nas mais diversas representações do feminino, ao longo tanto da história ocidental quanto da oriental.

Na Série Eu, há uma procura por conhecer quem se é, suas aspirações e sentimentos: “Eu, nativa do fogo,/Que desço as profundezas escuras de mim mesma,/Guiada por Inanna/Me banho nas águas turvas das emoções reprimidas.../fracasso/No fracasso me reconstruo (...)”. Nessa mesma série, ainda, anunciam-se estratégias de resistência de um eu-feminino cerceado pela violência social e pelos estereótipos contra os quais as mulheres frequentemente têm de se voltar, como os de “santa” ou de “puta”, como se lê no poema XVII, “Fogo”: “Mulher, para se livrar dos pensamentos sujos, cante-os!/Lambuze-se no prazer de ser suja/Mulher, você é o pecado original, não há saída!/Atire contra os que te atacam!/Inimigos reais e irreais, vocifere a raiva que te toma o útero (...)”.

Conforme consta em notas de rodapé da obra, muitos dos poemas foram musicados e podem ser ouvidos no YouTube – em belas apresentações, por sinal.

Destaque especial nesta obra vai para as ilustrações de Karla Ruas, que dialogam e, mais que isso, são, por si mesmas, quase um outro poema – como exemplo, a ilustração do poema II da Série Eu, mencionado acima, e, em especial, a ilustração do poema XXIII dessa mesma série, em homenagem a Mariele Franco – um dos pontos altos do livro, aliás –, em que um mosaico de rostos de cores diferentes remete à essência do poema, como ilustram os versos a seguir: “Mariele Franco/Confesso:/Me sinto 10 mil. 10 mil mulheres. 10 mil nomes. 10 mil seios./(...) Cada mulher que cruzo na rua, sou eu também, e eu sinto nas entranhas./Escolho não calar mas transmutar cada memória de dor que habito de ser Eu e Elas,/A cada nota que entoo na voz cantada, mesmo desafinada, mesmo rouca./Na Terra, me bateu no peito, virou poesia.” É assim, então, que memórias e experiências femininas se cruzam; seja como for, a palavra “útero”, mote de alguns textos, remete ao mesmo tempo à origem e também ao potencial criador das mulheres – mulheres estas empoderadas e que se redescobrem a todo momento, pelo próprio potencial que a linguagem (das palavras ou do corpo) lhes oferece.

Trata-se, portanto, de uma poesia muito visceral, em que o corpo é conclamado a participar – o corpo com seus desejos, suas armadilhas, sua força enfim. Daí a associação do feminino com a mãe Terra, provedora, mítica, ancestral. No poema XX, “Terra”, há uma espécie de libelo contra todas as opressões: “Para se refazer quebre seus pilares/Suas certezas e moralidades/Use o sistema para implodi-lo/(...) Não se rotule da yoga, nem do black block/Seja impermanente (...).” Destaque-se, ainda, a forte presença da mãe natureza como símbolo das raízes femininas e indicativo de pertencimento a ela – o que se nota, sobretudo, nas duas últimas séries da obra, Série Natureza e Série Luas.

Desse modo, vale a pena conhecer o trabalho dessa artista, pois prestigiar o trabalho poético, musical etc. das mulheres equivale a criar uma rede de apoio (sororidade poética?) fundamental para a divulgação e a visibilidade de novas autoras. Afinal, “a revolução virá pelo ventre!”, como nos assevera Deh Mussulini em um de seus poemas.

 

MUSSULINI, Deh. Todas as primaveras em mim. Ilustrações Karla Ruas. Belo Horizonte: Editora Luas, 2019.