Também estivemos em Pompeia, de Simone Teodoro
É da natureza dos muros
existirem para atrair o musgo
assim como o sentido da chuva
é engendrar a lama
para decompor a vida
Simone Teodoro
Também estivemos em Pompeia é o terceiro livro da escritora mineira Simone Teodoro, publicado pela editora Patuá em 2019 – editora esta, aliás, que tem publicado excelentes autores pouco conhecidos do grande mercado, em projetos gráficos também primorosos. Dividido em cinco partes, o livro transita por lugares físicos mas, sobretudo, por lugares que perpassam uma espécie de geografia interior do ser humano, a qual se constitui, fundamentalmente, pela memória: memórias da infância, memórias de cheiros, memórias prazerosas e tristes, de afetos desfeitos, de momentos. Uma memória por vezes sinestésica, com indivíduos atravessados pelo tempo “como um grito por dentro”, conforme expressa um de seus versos. E o que resta desses momentos? Ruínas....
A melancolia e a desilusão dão o tom: não é pra menos, vivemos em um momento politicamente delicado, em que os direitos humanos são colocados em xeque a todo momento. As chamadas minorias, como as mulheres, os negros, os indígenas e os LGBTs, perdem cada vez mais espaço, ainda que, por outro lado, expressem cada vez mais sua voz. Essas questões reverberam mais fortemente nos outros livros de Simone – Distraídas astronautas (2014) e Movimento em falso (2016) –, o que não significa que estejam ausentes em Também estivemos em Pompeia, sobretudo na maneira como a palavra poética se apresenta como resistência perante as dificuldades de nosso tempo.
Imagens fortes e significativas ressoam neste conjunto de poemas, como os cães assassinados na infância, os quais simbolizam sonhos, desejos, expectativas que se frustram. Afinal, “Como não ser triste/quando o que eu mais amo/sem explicação nenhuma/se desvanece? (...) Como não ser triste/quando/do Baú de minha infância/exumo cores/claves de sol/e as carcaças de todos os meus cães assassinados?”
É a poética da dor que se desenha, ganha tons, cores, formas e cheiros diferentes em cada poema, mas está sempre ali, persistente, infiltrando-se nas entranhas de cada palavra. Porque sim, é pela linguagem que os sentimentos e as sensações com os quais o leitor se sente impactado atingem seu alvo. É cuidadoso, meticuloso o trabalho que Simone empreende com a matéria poética.
A infância, ao invés de cenário idílico, é manchada pela loucura de um pai ou pela perda de um bichinho de estimação – um gato atropelado, um cachorro sangrando... Em “Rito”, a dor e a perda são ritos de passagem para um amadurecimento forçado: “Um grito de menina/interditou o tempo/suspendeu os jogos (...) O grito da menina/atropelou a infância.”
O próprio título do livro se erige sob o signo da destruição: a cidade de Pompeia foi engolida pela erupção vulcânica do Vesúvio, como é sabido. Imaginemos a força da lava, a velocidade com que isso aconteceu... com nossa vida prosaica, somos levados ao inferno da destruição quando as pequenas ocorrências infelizes do dia a dia minam nossa resistência. Também somos engolidos por fumaça e rochas e fogo quando nos decepcionamos, quando terminamos um relacionamento, quando perdemos um ente querido e assim por diante – “Também estivemos em Pompeia/Respirando a poeira do tempo”, como se lê no último poema da obra. Nesses momentos, a literatura e, principalmente, a poesia, podem ser importantes válvulas de escape.
Destaquem-se ainda aqueles poemas em que Simone faz um jogo intertextual com outros autores, como Carlos Drummond de Andrade. Em “Cheiro forte de ferro e náusea”, o diálogo com o célebre poema de Drummond aponta não para uma esperança, mas sim para o desencanto diante do mundo. Se no poeta de Itabira uma flor feia nasce no asfalto, driblando as dificuldades – “Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio” (“A flor e a náusea”) –, em Simone Teodoro resta a desilusão: “Hoje não há flor, Carlos./Só há náusea.” Destaque também para o poema “Amor”, bela releitura poética do conto homônimo de Clarice Lispector e, ainda, para o poema “Mapa para Murilo Mendes”. Aliás, a ideia de um mapa a ser percorrido, perscrutado, é instigante para se pensar o livro de Teodoro: o mapa das lembranças, das ruínas, e também do corpo. O próprio livro como um todo pode ser lido como um conjunto de territórios diferentes, mas que, de algum modo, se completam.
Um certo tom de desengano diante da vida, trabalhado com rara beleza poética, permeia muitos poemas: em “Ver Nápoles”, tem-se “Um arder por dentro de ruína ao sol” e “Um arder/ de ruína/ corroendo/ o sol/ por dentro”. Assim, “a morte do amor em Roma” ou “o funeral do amor em Trastevere” são pequenos momentos de solidão, pequenas solidões que se encadeiam uma à outra, quando o ser humano está só consigo mesmo e com seus demônios. Afinal, a solidão é um caleidoscópio, como expresso no poema “No fundo do tubo de minha solidão de metal”.
O livro poderia soar amargo, no entanto, sobretudo em sua segunda parte, confrontamo-nos com imagens como a do poema “E pelos ares lá vai o gato”, as quais apontam para a poesia como forma de driblar a dor, pois é pela linguagem que a dor se transfigura: “E quando eu estiver caindo/que o gato/(quântico bailarino)/me ensine/a insultar o abismo/com um passo de dança.”
O texto de orelha, escrito por outra grande poeta, Adriane Garcia, faz um convite ao leitor para que percorra as páginas dessa poesia que nos atrai e ao mesmo tempo nos assombra, e é com essa citação que terminamos essa breve resenha: "Venha ver: este livro não é só um livro, mas um lugar, cujos escombros se comunicam. Tenha coragem, entre. Há perigo, mas valerá a pena.” Mais do que nunca, vale muito a pena nos embriagarmos de poesia.
TEODORO, Simone. Também estivemos em Pompeia. São Paulo: Patuá, 2019.