Jiro Taniguchi, um mangaká benjaminiano
Jiro Taniguchi, a narrativa da observação: uma revisita à flanerie de Walter Benjamin
O que um bom desenhista e escritor(a) tem em comum? Tanto na escrita quanto na arte, a capacidade e a desenvoltura do talento estão no ato da observação. Saber descrever com minúcias sem cair no pedantismo se resume a dar ao leitor uma imagem perfeita do personagem da obra, enquanto o artista se preocupa em mostrar uma cena panorâmica, ele concede a quem vê sua arte a dimensão de estar naquele lugar.
Descrições sucintas tornam a narrativa rápida demais enquanto àquelas que valorizam o conjunto como personagem e paisagens através do olhar do narrador levam o leitor para dentro da obra, situa-o e intensifica a leitura. Por meio deste olhar atento e cuidadoso que sempre nos remetemos à figura do flâneur, não se trata de um andarilho, mas de um observador. O flâneur conduz o leitor e nos empresta seus olhos, seus pensamentos e observações por onde passa.
O reconhecido mangaká japonês, Jiro Taniguchi (1947-2017), teve três obras de sua autoria lançadas recentemente no Brasil, todas elas tinham em comum o personagem principal como um exímio observador, mas fato é que sua obra torna-se amplamente conhecida pelo público leitor de quadrinhos após sua morte. A primeira graphic novel que li, “Guardiões do Louvre”, publicada pela editora Pipoca e Nanquim em 2018, com uma edição luxuosa, colorida e história inédita traz um primor de mangá que mistura história da arte e segunda guerra-mundial em meio a uma narrativa de ficção e fantasia. O que parece ser um simples passeio turístico de um andarilho viajante se descortina em uma narrativa flaneriana. E é dessa figura tão presente nas obras de Taniguchi que revisitei Walter Benjamin, para entender esses personagens solitários.
Walter Benjamin, em Passagens, faz um recorte da figura do flâneur, em que o insere como o indivíduo capaz de olhar sobre a cidade de forma atenta às suas principais mudanças, registrando as reflexões acerca do impacto da modernidade nas cidades. “A cidade é a realização do antigo sonho humano do labirinto. O flâneur, sem o saber, persegue esta realidade” (BENJAMIN, 2009, p. 468).
A partir do conceito dado por Benjamin, podemos compreender a flânerie como – o ato de caminhar sem pressa, observando os elementos da paisagem urbana. Para o filósofo, a arte de andar pela cidade, apreender seus detalhes se constitui de um mosaico poético da urbanidade que cria laços de pertencimento entre o observador e a cidade. Por meio dessa relação de pertencimento há a apropriação do espaço pelo flâneur que descortina os segredos do espaço-lugar que percorre.
Pela ótica benjaminiana as ruas são espaços coletivos compartilhados, em um transe constante de movimentos e carregadas de representações sociais, seja pelas edificações, pelas pessoas ou pelos acontecimentos que nelas se figuraram como cenários, um espaço do coletivo. Para Benjamin (2009, p.468) “As ruas são a morada do coletivo. O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente agitado que vivencia, experimenta, conhece e inventa tantas coisas entre as fachadas dos prédios quanto os indivíduos no abrigo de suas quatro paredes. [...] a rua, se apresenta como o intérieur mobiliado e habitado pelas massas.”
A filosofia de W. Benjamin teve como pano de fundo a crítica à cultura ocidental, o modo americano e europeu de viver. A superficialidade das coisas pelo materialismo deu asas à visão marxista de Benjamin. Estamos tão americanizados que não bastou o American Way of Life, somos tão colonizados que nos tornamos ainda mais europeus que não sabemos sequer apreciar com minuciosidade os objetos, apropriar dos momentos e dos espaços. Taniguchi explora de forma profícua esse lado benjaminiano crítico.
Com essa definição clara, a principal característica das obras de Jiro Taniguchi lançadas no Brasil nos últimos dois anos, possui como elemento principal a figura de um observador. As narrativas gráficas de suas histórias revelam um único personagem protagonista que carrega uma personalidade de um flâneur, que nada mais é um solitário caminhante que divaga com suas percepções por onde percorre.
Os dois mangás de Taniguchi publicados pela editora Devir Brasil, “O Homem que passeia” e “O Gourmet Solitário” são graphics novel que diferente de “Guardiões do Louvre” trazem uma ficção menos fantasiosa e mais próxima da realidade do leitor. “O homem que passeia” publicada em 2017, com miolo em preto e branco, leitura oriental, apresenta um mangá sem uma história propriamente dita. A narrativa é carregada de cenas captadas pelo olhar do personagem que faz da cidade um lugar de experimentação, experiência estética através do olhar. Exerce o papel flaneriano à medida que revela elementos do cotidiano que não se vê nas narrativas gráficas como descortinar lugares pouco conhecidos e explorá-los de forma inusitada, como a atitude do personagem de nadar nu à noite na piscina que fica ao lado da biblioteca pública. Essa decisão acontece após ele observar através da janela da biblioteca as pessoas se divertindo na água. O olhar panóptico sobre o cotidiano desperta curiosidade em vivenciar um momento ordinário da vida japonesa. São situações do dia a dia sem muita relevância e sem qualquer indício de ações tão comuns nos quadrinhos. São situações aleatórias de uma caminhada do personagem pela cidade seja para ir à biblioteca, ao supermercado e até mesmo ao trabalho se transformam em um diário fotográfico do seu olhar.
A graphic novel “O Homem que passeia” é dividida em dezoito capítulos e mais quatro extras, a obra apresenta em cada capítulo pequenas situações diversas vividas pelo personagem. Em todas elas, seu desfecho possui reflexão e memória afetiva. O carpe diem do personagem se transforma em registros de memória pelo seu olhar, memória compartilhada pela narrativa, pois o próprio personagem não a revela a ninguém mais tampouco a sua esposa. É uma jornada solitária e temporal. Ao final da graphic, uma entrevista com o autor intitulada “A caminhada como liberdade” em que assume o papel do caminhante, característica da figura do flâneur.
Taniguchi explora em “O Gourmet Solitário” (2019) as mesmas características do mangá anterior, o personagem que caminha pela cidade de forma solitária, não possui nome, e se apropria das suas memórias para mostrar uma passagem de tempo. Neste mangá, Jiro Taniguchi é responsável apenas pelo desenho enquanto o roteiro ficou a cargo de Masayuki Kusumi que de forma mais intensa faz uma experiência compartilhada ao criar um roteiro gastronômico das passagens do flâneur nipônico.
Mais uma vez o mangaká apresenta ao leitor uma jornada de descobertas durante as buscas do personagem em diferentes cidades em que descortinava a gastronomia japonesa. Nesta edição, a graphic se transforma em um cardápio nas mãos do leitor. Notas de rodapé traduzem os nomes dos pratos típicos que o flâneur degusta durante suas andanças a trabalho. Dezenove capítulos cujos títulos são nomes de pratos principais provados pelo personagem, sendo o último um episódio especial de um cardápio de hospital. Curiosamente, o personagem também faz algumas passagens pelo tempo ao buscar em suas memórias por meios dos flashbacks – recursos comuns nas narrativas gráficas de transposição do tempo no meio da narrativa – cenas locais que mudaram com o passar do tempo, a espacialidade e temporalidade são elementos constantes em “O Gourmet Solitário” e todas elas estão ligadas diretamente à memória afetiva do personagem.
As receitas de cada prato mostram hábitos, culturas locais, regionalismos e até mesmo fatores social e econômico como diferentes classes e profissões são observadas pelo narrador. A narrativa possui um resgate simbólico por meio da gastronomia japonesa, e desta forma o flâneur reflete a importância da cultura imaterial que só se torna possível vivenciá-la por meio da experiência em conhecer os recônditos de seu espaço/habitat.
A arte de Taniguchi reflete cenas panorâmicas, praticamente um mapa pelo olhar do personagem, os percursos se transformam em um roteiro que dão sequências à narrativa e assim constrói a história com diferentes situações que o envolvem, o que torna possível conduzir o leitor e ainda situá-lo no espaço e tempo. A premissa de um flâneur nas graphics de Taniguchi é caminhar, descobrir novas coisas por onde esteja, e dessa forma o leitor é convidado a fazer esta jornada de descobertas. Seus traços são bastante semelhantes entre os dois mangás publicados pela Devir e possui como ponto-chave o uso da linha clara. As edições em P&B da editora Devir mantêm a linguagem japonesa sendo traduzida em notas de rodapé, o que traz uma originalidade local interessante às obras, diferentemente da edição da Pipoca e Nanquim.
Os mangás de Taniguchi publicados no Brasil mostram o quanto a teoria de W. Benjamin se aplica à cultura japonesa com um olhar que resgata elementos culturais locais e uma prática ordinária que não se restringe apenas a vida parisiense como dizia Benjamin “Paris criou o tipo do flâneur” (2009, p. 462) que reflete a construção de uma cidade imaginada e desfrutada pelo observador, “construída de pura vida” (2009, p.462). Taniguchi revela em suas obras que a paisagem é pertencimento individual e coletiva do qual compartilha sua perspectiva oriental revelando hábitos e culturas que apenas é possível se conhecer por meio de uma experiência flaneriana.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG/Imprensa Oficial de São Paulo, 2009.
TANIGUCHI, Jiro; KUSUMI, Masayuki. O Gourmet Solitário (Koduku no gourmet). Col. Tsuru. São Paulo: Devir, 2019
TANIGUCHI, Jiro. Guardiões do Louvre. São Paulo: Pipoca & Nanquim, 2018
TANIGUCHI, Jiro. O Homem que passeia (Aruku Hito). São Paulo: Devir, 2017
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Isa de Oliveira é doutoranda e mestre em Estudos de Linguagens, revisora, resenhista e crítica, produtora de conteúdo do bookstagram @corujadasletras, poeta e escritora, autora de Intermitências (Crivo Editorial, 2019).