25 de março de 2020

Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas

Quem somos nós, brasileiros? O que sabemos sobre nós mesmos, nossa história, nossa cultura, nossas raízes? O Modernismo brasileiro empenhou-se em pensar nessas questões e indagar sobre nossa verdadeira identidade cultural como povo. A Semana de Arte Moderna, dentro em breve, completará 100 anos. De 1922 pra cá, é fato que muito aconteceu em termos de cultura, política, economia. Amadurecemos (ou não?), como povo, como sociedade. Seja como for, nossas identidades, sempre móveis e fluidas, continuam a se reconfigurar. É assim também que um movimento como o Modernismo brasileiro merece ser relido. É o que faz Bruna Kalil Othero em seu Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas, publicado pela Editora Letramento (2019). Em uma releitura crítica e contemporânea do Modernismo brasileiro, a autora reinventa a si mesma e à sua própria linguagem, em uma poesia ácida que pode ser lida e gritada em voz alta em uma bela performance – o que, aliás, aconteceu no lançamento do livro em Belo Horizonte, no final do ano passado –, tal a força e o impacto que seus versos alcançam.

Há jogos intertextuais riquíssimos tanto com os textos literários em si quanto com a história privada do Modernismo, em uma linguagem que transita pelo popular e pelo chulo, jogando na cara do leitor mais desavisado o quanto nossa história como nação é marcada pela violência, pela opressão e pelo descaso com as minorias: “Acerca da formação do Brasil, assinale a alternativa correta: a) puta que pariu/ b) caralho/ c) porra/ d) se fuder/ e) todas as anteriores.” O questionamento do establishment aparece de diversas formas, já a partir do questionamento do próprio cânone enquanto única instituição autorizada a nos dizer o que é bom literariamente ou não – “não existe mais o clássico. o cânone. /tudo está morto. é hora/de reinventar.”

 

 

A tradição popular já é colocada ao lado da canônica nas epígrafes – uma de Oswald de Andrade, outra de MC Carol –, e ambas nos convidam a refletir sobre a oposição binária em que os gêneros masculino e feminino são colocados, em um movimento para desconstruir papéis fixos e rígidos que nos são socialmente atribuídos. Tão ao gosto de Hilda Hilst, a quem Bruna Kalil filia-se como admiradora, leitora e, sobretudo, pesquisadora séria de sua obra, vemos transitar por este livro críticas ácidas a uma sociedade que se alimenta de aparências. É assim que, por trás dos “homens sérios” do Modernismo, que nos legaram obras canônicas, estudadas nos bancos escolares, vemos histórias de bastidores não contadas oficialmente: “manuel não namorava porquinhos-da- índia./pagava prostitutas./carlos cobiçava menininhas em copacabana/permanentemente olhando pra calçada, não pro mar./a história se lembra dos homens pelo texto./às mulheres, o beco./o mundo não é o que pensamos.”

Desse modo, homens que “dominam o mundo há séculos e não conseguem lavar as próprias cuecas”, nas palavras da autora, asseguram a manutenção de um sistema que confina as mulheres ao mundo doméstico, privado, ao qual já não queremos pertencer. E mais ainda: aquelas que se destacam no espaço público, nas mais diversas áreas do conhecimento, são simplesmente “esquecidas”, no que Constância Duarte nomeia como “memoricídio”, a saber, o completo apagamento histórico dessas mulheres. Ao trazer à tona do texto poético as muitas “odetes” (com minúscula mesmo), mulheres comuns, invisíveis, que se casaram cedo, tiveram muitos filhos, e que jamais terão sua história contada, Bruna Kalil fratura o sistema literário, fazendo com que outras vozes sejam ouvidas.

A obra dialoga, ainda, com a história do Brasil no âmbito político. Até porque fazer poesia, por si só, já é um ato político, de resistência. É assim que a famosa vassourinha de Jânio Quadros, na campanha eleitoral de 1960, e o famoso lema de Juscelino Kubstichek, “50 anos em 5”, marca de seu governo supostamente desenvolvimentista, são relidos criticamente à luz do contexto político atual: “varre, varre, vassourinha/agora que já tiramos os corruptos/vamos vender nosso petróleo/e voltar 50 anos em 5.”

Fica o convite para que o leitor, se ainda não o fez, conheça Bruna Kalil Othero e sua obra, poesia atual, potente, um vaga-lume que sobrevive e nos enche de esperança na atual escuridão de nossos dias. Uma mirada crítica e criativa sobre nossa história ainda é possível.