25 de fevereiro de 2020

Indignidade

Houve um pavor irracional em mim. Tautologia; não existe pavor racional. Quis falar da extensão do pavor – e não mexer com a sua inteligência, leitor – que vinha tomando uma proporção tal que já não era cabível amenizar nada; acreditar, por exemplo, na ladainha da Zulmira: “Vai ficar tudo bem, Seu Carlos; vai ficar tudo bem”. Pelo olhar dela, óbvio, não ficaria nada bem. Só mais uma pessoa acostumada a sofrer e a falar frases prontas, inúteis, com o dedo atolado no automático. Ou seja, o jeitinho crônico, de gosto mórbido pelo padecimento, do ser humano brasileiro.

Ela não tinha nada a ver com a enxurrada pela qual estava passando. Mas dava ares de tripudiar da minha agonia. Uma troglodita, pelo grosso da vida escassa, burra de pai e mãe, tinha algo a me dizer ou a me ensinar? Francamente.

Tudo começou com o sumiço de Marina, sem mais nem menos. O clamor, que vinha do peito, foi abafado pelo peso do nada. Daí entendi que aflição é deixar-se cair no vazio, sem arreios nem freios. Por vontade própria, ainda que suspeitasse de minha ojeriza por sua figura selvática, Zulmira passou a vir mais do que o necessário, sem receber um centavo extra, claro. A infeliz, que conheço há uns vinte anos, da jornada servil à minha mãe, se sentia decerto obrigada a cuidar também de mim: “Como um filho; você é como um filho pra mim, Seu Carlos”. Quem chama um filho de “Seu fulano”? Patética.

Talvez quisesse espelhar-se em Adalgisa, minha mãe, então cuidadosa e dedicada. Havia, inclusive, recebido comenda cívica, na era militar, por ser modelo de mulher brasileira, do que a nação aspirava para as futuras gerações. Não obstante, foi-se murcha, constrita em seus aposentos, sem dar conta de nada. Quatro anos vegetando, com aparelhos e suportes, e pessoas e aparatos; e mais pessoas a paparicar-lhe e a sugar-lhe dinheiro. Morreu feito uma passarinha, desnutrida e baleada. Egoisticamente.

Se fui o único familiar a dar-lhe plena assistência; se me deixaram entregue às baratas, então, senti-me naturalmente entronizado, por sucessão e bênção divina, e, por conseguinte, com distinção e poder para ser o legítimo dono do extenso patrimônio. Jogaram a bomba em cima de mim; que se explodam! Em suma, o colapso derradeiro foi um fôlego, naquele momento, e meu coração se encheu de esperança. Mas o maldito revés veio a galope. Você, leitor, saberá do ardil, a tempo e horas, tintim por tintim.

Nesse ínterim, a enxerida da Zulmira acompanhava tudo de soslaio e portava-se, para melhor passar, feito uma pobre coitada, desinteressada. Intuo que foi sempre assim, sonsa. Tresloucada, um dia a velha Adalgisa deu sugestão de enfiar o dinheiro todo no ralo. Jurei que daria entrada no processo de interdição, para tomar tento e saber me respeitar. Precisava pôr as coisas nos seus devidos lugares. A decrépita esganiçada aos poucos se rendeu às novas leis; topou morrer em paz, digamos. Foi esse o nosso trato tácito.

Entregou-se decididamente ao acaso a covarde, mesmo com as adulações e as cavilações de Zulmira, sua fiel escudeira. Distanciei-me; repugnava o convívio e o feitio da amabilidade calculada. Passei três meses longe, para respirar e voltar são. Não resultou. Regressei com sangue nos olhos, pois que precisava controlar tudo, o mais rapidamente possível. O advogado estava com a papelada pronta para dar entrada, quando a velha morreu. Desandou o projeto. Tive, mais uma vez, de refazer a rota.

Lembro que Marina, antes de partir, explicitava na íris outros desejos. Estava estranha. A pilantra afirmou, no altar, que toparia tudo comigo, do começo ao fim; que seríamos uma só carne. Não a perdoo por ter incitado o caos, por debaixo dos panos. Usou, como subterfúgio, seguramente, a descoberta de uns negocinhos escusos meus. Bobagem; ficou magoadinha. Frescura de mulher dita empoderada. Caí na besteira, ainda, de lhe explicar que o grande conforto que ela tinha era proveniente disso; que a vida teria me posto assim, sem pai, sem referência, de joelhos ao relento, refém do dinheiro: sem alternativa. Falei, falei, e a dondoca não entendeu, ou fingiu não entender: “Mocinha, depois que se entra no rolo compressor, não tem mais volta!”. Cada passo, cada truque, é como sacar um bichinho de pelúcia da máquina do shopping: quer-se ganhar mais, enganar as autoridades, e manter no topo, com todas as pompas e circunstâncias.

No último dia dois, Marina fez a boa: veio pegar umas roupas, documentos, carro e outros bens, com um oficial de justiça e dois policiais a tiracolo. Disse que eu me retirasse, sem estardalhaço. Ainda teve o cinismo de falar isso, na minha cara. E estava com Zulmira, muito pronta, diferente, dona de si. Entregou-me a cópia do testamento. Prestes a rasgá-lo, vi que Marina e Zulmira estavam mancomunadas, eram donas da porra toda, incluindo a mansão. Devassas. Joguei-me do prédio; só piorou a situação, agora amargo três pinos na perna direita, duas costelas quebradas e dezesseis pontos na cabeça.

Quando havia ordem neste país, quando o panorama era de respeito às leis, sejam declaradas nos papéis ou nos costumes, regalava do conforto à paz. Mulheres tinham o seu lugar demarcado na sociedade. Repito: a aura era de paz, sem sobressaltos, tanto que não me preocupava com o fragor de uma novidade marginal, feminista: o engenho do mal.

Acreditava nessa aberração que se dizia ser minha mulher. E minha mãe, a mulher para a qual confiei meus preciosos préstimos de filho, nem se fala, deve estar ardendo no inferno. Traidora. Infiel. É o fim dos tempos. Zulmira?! É mesmo o fim dos tempos, não tem jeito. Extintos estão o amor e o respeito à hierarquia natural.

E eu que esperava, por fim, gozar desses bens, que são meus, me vejo prostrado. Nem mel, nem cabaça – por ora. Jamais pobre ou coitado. Tenho horror a coitadismo. Não perdem por esperar, indignas, a minha ressureição.

 

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Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora. Colabora com a Revista Samizdat. Tem crônicas e contos publicados nas Revistas Berro, InComunidade, Lavoura, Literatura & Fechadura, Pixé, Ruído Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.