23 de janeiro de 2020

A poesia de Daniel Perroni Ratto

Daniel Perroni Ratto foi vencedor do Prêmio Guarulhos de Literatura 2019, na categoria ESCRITOR DO ANO, com o livro, Alucinação (Algaroba, 2018), Daniel Perroni Ratto é poeta, jornalista, músico e editor, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pela ECA/USP. É autor dos livros, Urbanas Poesias (Ed. Fiúza, 2000), Marte mora em São Paulo (A Girafa, 2012), Marmotas, amores e dois drinks flamejantes (Ed. Patuá, 2014), VoZmecê (Ed. Patuá, 2016), finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura 2017.

 

Entre um prato de feijão e o café coado

Foi só você chegar
Fomos buscar uma
maneira de encarar

o mundo

E quando chegou lá
teus olhos disseram
que não tinha mais

lugar seguro.

 

*

 

A Grande Visagem

Corria serelepe o menino
pelas capoeiras do sertão
Pulava no sangradouro
do açude em construção

Bola com seus amigos
Pituca, Boi e Eduardão
Dos tempos vindouros
não tinham a dedução

Casa de taipa, tio Pêdo
São, debulhava feijão
Ah, chuvas de inverno
nossa real alucinação

Era tão bom se molhar
nas gotas da esperança
O sorriso fácil a brotar
na colheita da festança

Brasas no fogão a lenha
duas panelas de barro
No baião e na cabidela
a pimenta e o coentro

O menino ia desbravar
a caatinga do mistério
para Lampião acordar
a lenda do ministério

Eram redes e fogueiras
uma trempe a cozinhar
Lendas da abençoadeira
acordados a nos deixar

O gigante de um olho
costumava a pastar
enquanto fazia o corvo
a ronda estelar

Se alguém reclamasse
logo o gigante
gritava: O prato fundo?
Ficava nem alma

Se a Caipora lhe visse
era o bastante
sussurrava: Tens fumo?
Ficava nem alma

Bastava algo além
de uma coruja a piar
a botar para correr
as almas de Belém

Mas acabava mesmo
quando era lua cheia
lá no meio do esmo
e um uivo se ouvia

No fim, de branco
caminhava a mulher
a apagar a lamparina

Armado com talher
comendo tangerina
em escuro flanco

Me ajeitava na rede
daquele quarto só e
dormir com a sede
de ser livre outra vez

 

*

 

Corpos absolvidos da imaginação

Vagões viram fornos sobre trilhos
Saci com duas pernas sofre bulling
Alunos expulsos pelos chulés
negarão registros aos inelegíveis

Não há dúvida, as tretas desencadeiam
ajudas de custo nas manchetes
As flores de lótus espalham pânico
Os mercados atacam com chibancas

A febre amarela causa mortes
na movimentação neonazista
Diálogo ameaça Estados fortes
como uma música de Cazuza

Homem-diabo costura sua própria boca
Leilões rendem dias felizes
As prisões brasileiras explodem em barbárie
A vaca cai do céu e o lucro é história

Todo mundo tem um lado onde o ganso acaba afogado
e o catador de latas é o primeiro condenado
Quando se reduz a projeção
o falso taxista é caçado
sobra até pro aleijado
divulgar as ideologias de dominação

Eleitores querem novos nomes
Estagiários não servem para acender o rojão
Assaltante tira onda no facebook
e a polícia aperta o botão curtir

Deveria deixar sorrir
quando o Planalto arma uma ofensiva
O mundo amanheceu sarcástico
nas lavanderias de Brasília

Nasceu o diabo em São Paulo
e ele matou o Luan Santana a tiros
PMs invadem Cidade de Deus
para recuperar a espada do He-Man

O mau velhinho é visto de vermelho
no elevador panorâmico do Shopping Iguatemi
batendo punheta enquanto a duende gostosa gargalhava

O Homem-mãe dá leite de seus peitos
aos aloprados moradores do Congresso Nacional
Discos voadores resgatam trabalhadores escravos
nas fazendas oligárquicas do Planalto Central

Padre extermina com seu fuzil estadunidense
quinze infiéis na missa de domingo
Aleluia, irmão!

Nesse meio tempo, ação!
cyborgs levam suas famílias
aos festejos circenses
Homem rouba um carro
para ir ao próprio julgamento

Movimento estudantil sob ataque
Uma kombi foi incendiada
e no batucar dos atabaques
uma galinha foi a sobrevivente
Fênix

Com seu colar de ônix
uma mulher dá à luz
Sangrada e executada
a peixeiradas

As notícias continuam caluniosas
e um preso acusado de suicídio
é encontrado morto em sua cela

Pedestres são armadilhas
para motoristas em ruas e estradas
Deveriam vestir purpurinas

Sequestrado por seres de outro planeta
avisa que seus captores só negociarão
sem a presença ofensiva da polícia

Na elucidação de surtos passionais
a chuva de meteoros avermelha a noite chapada em Diamantina
e as camisas dos movimentos sociais

Portas de edifícios te olham
afirmando que a fé faz bem
Sensacionalismo barato abandona teu programa favorito
quando te avisa que a sogra faz macumba
não espera dar a hora
escala a parede da casa e foge desaforado
pulando fogueiras no telhado

Sem ordem e à espera do progresso
ou de outra viagem à Lua
reagirei ao Golpe e às fake news

Que venha o apedeuta de fuzil
ou a Rainha de Copas
Podem cantar as vedetes da Urca
até comprar balas made in Brazil

Respeito copiosamente sua mutação
para além do calor extremo de suas palavras
sem censura peço licença e atenção
Esse delírio é de estimação, é o cercado das lavras
Da vontade de existir De minha Alucinação.