17 de outubro de 2019

A poesia de Claudia R. Sampaio

Cláudia R. Sampaio é uma poeta e artista visual portuguesa nascida em 1981. Colaborou em várias revistas e antologias de poesia e escreveu um texto para teatro a convite da Culturgest no âmbito da 10ª edição do festival panos. Neste momento dedica-se apenas à pintura e à escrita. É artista residente no espaço Manicómio, que tem como objectivo apoiar e divulgar a arte de pessoas com doenças mentais. No Brasil, acaba de ser publicado, pelas Edições Macondo, o livro Inteira como um coice do universo, que reúne os títulos A primeira urina da manhã (Douda Correria, 2015), 1025 mg (Douda Correria, 2017) e Outro nome para a solidão (Douda Correria, 2018). Além desses, publicou também, em Portugal, Os dias da corja (Do lado esquerdo, 2014) e Ver no escuro (Tinta-da-china, 2016).

 

*

tenho este ranger de dentes nocturno
que acompanha o roer de unhas
enquanto a vida se aquece no estômago

uns contra os outros, numa dança estéril,
os meus dentes são aviso dos dias
infindáveis
da minha cabeça infindável
da sopa misantropa infindável

tenho este ranger de dentes que me
avança o corpo entre os dias
que me alarga, que me constrói a loiça
da língua
dente contra dente numa dança Wagneriana,
um sorriso capaz de três marés,
saliva em cascata numa almofada amante

primeiro acto: molares
segundo acto: caninos
terceiro acto: Tristão, Isolda e eu,
a rangermos os três numa barquinha
os meus pés em remos sobre o lençol

lá vamos nós quarto abaixo
desvairados destinos lançados por dentes
há pianos, há facas, há de tudo na minha boca
há poemas que surgem em esmalte
e lançam purpurinas e risos estridentes
ameaço acordar mas não ouso
ameaço dormir mas não sei

não viverei nesta avareza de corpos tácitos
ascendo-me em pranto, solto um dó
a última piedade de um coração toupeira

tolero perder quase tudo excepto
este ranger que me sobrevive

é na falha dos dois dentes da frente
que espreita a reinvenção de deus

[ Do livro A primeira urina da manhã]

 

*

 

O tecto está rente à minha cabeça.
Quero deixar a alma cosida aos hemisférios nocturnos.
Tenho de me parir lenta.
Tenho de me cobrir como um ramo de crisálidas luzentes
à espera do céu.
Agora tenho tudo porque já vi cair as falésias.
Não sei do ar, não sei dos pais, não sei dos médicos.
Guio-me à existência calafetada de um dente em proa.
A minha casa inexiste com o cheiro das praias.
Eu não tenho praias. Eu não tenho casas.
Sou tão finda.
A minha terceira gaveta são cinco espécies diferentes
de comprimidos em onda.
Sou tão finda.
Os meus sonhos andam porcos.
Os meus sonhos só existem na calamidade possível.
Sou tão impossível.
Alarmei o peito por dentro dos átomos e eu
tenho os átomos à perna da loucura.
Os meus sonhos andam porcos.
Os meus sonhas estão na tua boca.
Hei-de roer a náusea.
Hei-de ser finda
(e morrerei ao contrário).

[Do livro 1025 mg]

 

*

 

Talvez isto seja uma emergência
não sei que mimo nome poderá servir
Perdi a cabeça naquele sonho que tive
em que era uma quase-criança com os pés descalços
construindo uma cova boreal
pelas ruas
com um chapéu que mal me cabe na cabeça,
de tão certo.
É que a minha cabeça cresce ao mesmo tempo
que a minha alma desaparece no lombo dos pombos
Nunca me ia tão inteira, sendo eu,
sem espaço para mim mesma.

Sou um ovo à espera da grande queda
Tenho aspirado, migalha a migalha,
a pureza da imaginação que me resta nas
costelas deitadas
Uma ou outra reza aparecem-ene como turfa quente,
entre as plantas que vão morrendo.
Já não há ofensas que me atirem ao chão
nem me acendo com o sol apontado à testa
O Passado tem-me lambido o crânio
Já não separo a loiça nem as meias mortas
de outras coisas que tenho dito

A minha mecânica são duas laranjas esmagadas
Não há átomo que não me fure um olho

Ainda assim, tenho tomado a medicação
Já me chamei sertralina, valproato de sódio,
olanzapina
podia parir mil farmácias
Tenho experimentado todas as fórmulas
Abri a cabeça à machadada
Experimentei horas a fio de terapia
com uma janela virada aos sinos
Obsceno.

Olhem bem para mim:
Sou um Jesus pregado a químicos,
uma falha anónima erecta
nas tábuas
O meu nome é Milagre

[Do livro Outro nome para a solidão]