Como sumimos minha mãe
Eles derrubaram a porta com pontapés, apesar das diversas fechaduras, cadeados e grades. Eram homens imensos, truculentos. Os magros carregavam fuzis. Não houve nenhuma palavra de ordem, de primeiro violência e violência. Dona Manaíra estava na cozinha esquentando nossa janta enquanto eu datilografava meus manuscritos de criança. Veio correndo desesperada, com palavras soltas tentou salvar-me.
Chutaram a mesa, a máquina caiu no chão e fui arremessado. Um deles me apanhou, antes de qualquer pergunta me socaram o estômago. Vomitei, tornou a me socar e disse que se eu sujasse sua farda novamente ele arrancaria meus dedos com os dentes. Mamãe não pôde fazer nada, foi tudo muito rápido e ao tentar se aproximar, um deles a espancou com o cabo do rifle. Gritei, mas com isso só consegui algumas bofetadas. Dona Manaíra tinha força para se desvencilhar e cravar as unhas no rosto de pelo menos um, arrancar-lhe os olhos, mas conteve-se temendo me perder.
– Então é aqui a casa do comunista.
Ficamos com medo, pois sabíamos que ser acusado de subversivo era praticamente um atestado de óbito. Havia tanto medo daquela palavra que nem sabíamos seu significado. Dávamos mais atenção para a acusação absurda do que a palavra em si. Tentei dizer algo, argumentar, mas o falatório deles era sem fim.
– Eles vão aprender a respeitar esse país.
Mamãe falou que não tinha nenhum comunista ali, que ela era apenas uma secretária com curso de datilografia, viúva.
– E o menino? Falou o fardado segurando meus papéis que tinha batido na máquina há pouco. Olha aqui, Garcia, “Sofredores, só podemos padecer. Vermelho, só vejo o vermelho em todo canto”. Explica isso aqui, comunistazinho.
Meu filho não é comunista, senhor, meu filho não é nada, é uma criança de sete anos, vocês estão se equivocando, essa é a casa errada... e mais um golpe de rifle. Cala a boca cadela, eles disseram. E eu me mijava de medo, arrependido de ter batido aquelas palavras que eu nem sabia o que significavam, havia apenas escrito qualquer coisa. Como explicar? E se escuta criança? Não adiantou. Eles passaram a vista em todos os escritos, mas não pareciam realmente ler, queriam apenas censurar o próprio ato de escrever.
– Mãe, diz pra eles, diz que eu nem sei o que escrevi.
Antes dela abrir a boca... mais uma porrada. Mamãe humilhada, sem poder fazer nada. Eu menino aniquilado pelas fardas e as armas, sem saber o que fazer, arrependido de ter escrito aquilo, nunca mais escrevi nada.
Nunca mais vi minha mãe. Nem seu corpo pude achar. E depois de mais de quarenta anos volto a escrever para preservar a memória de Dona Manaíra, de todas as mulheres que sumiram, pensando naqueles que fomos silenciados. Quase me arrependo tendo que ouvir certos comentários, sendo obrigado a encarar os rostos incrédulos dessa plateia.
Hermes de Sousa Veras nasceu em Fortaleza, capital do Ceará, em 1991 Antropólogo e escritor, tem como marca no mundo literário a participação por seis anos no Grupo Eufonia de Literatura; escreve no Medium para as publicações Fazia Poesia, Ensaios sobre a Loucura e EuLírico. Publica constantemente em seu projeto de microcontos no instagram, o Eita! Nem viu... (@viu.eitanem). Este conto faz parte de seu primeiro livro ainda em preparo: Fricções.
Thay Petit - felinista, ilustradora, grafiteira e antropóloga em formação. Suas ilustrações autorais se transformam e graffitis, capas de cadernos e outras miudezas. - Imagem da máquina.