O tempo e seus afluentes: a poesia de Wanda Monteiro
Na poesia de Wanda Monteiro o tempo tem muitos afluentes. Tempo-líquido que excede as banalidades das horas, dos calendários e a concepção linear de passado, presente, futuro. O tempo se torna pensamento e se dilata em suas incontáveis dobras. A poeta cria percursos líquidos na corrente da memória. O rememorar ganha dimensão criadora, em um salão de silêncios, entre os pedregulhos do passado. Uma luta contra as sobras e as sombras que nos apavoram.
“erigir do tempo / pretérito leito / adoecer de lembrar / quedar-se em silêncio / de surda ausência”
“Adoecer de lembrar” é um modo poético para falar dos incômodos da memória, da dimensão vivida composta pela experiência com diferentes passados. Lembrar é ato vigoroso que nos faz reviver o que foi vivido, nos dá segurança psicológica e estabilidade, mas é também desenterrar incômodos e calafrios indesejados. Assim, o livro segue pelos afluentes que cria.
“regressar a corrente / do tempo / reter tudo que nele corre por palavras / ler as horas de sua líquida linguagem / escutar a ressonância de suas claridades / de seus escuros / pela escrita transver o curso desse rio”
A partir do que nos diz a poeta a palavra é essa ponte no tempo, esse chão frágil que pisamos para ver, transver e sentir a materialidade de suas ressonâncias. A palavra é o lugar que nos faz perguntar: qual o tempo da poesia? O que a poesia faz com o tempo? Wanda Monteiro faz uma celebração dessa matéria volátil que inventamos como uma grande ficção, o tempo humano.
“o corpo é esse rio / cuja nascente e foz / disputam a força / o espaço / o tempo e as profundidades / no centro de um coração”
A poesia de Wanda Monteiro tem a capacidade de criar abrigos e espaços bonitos – antídoto que penetra a carne e se estende pelos veios, tecidos e estruturas corporais, ganha o território sensorial, o imaginário e nos faz perguntar se retemos o tempo ou se gozamos o movimento.
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Somos um frágil equilíbrio de vida - líquida e efêmera - ancorada no olho do sol.
há quem diga do corpo - de sua concretude
mas o que há é liquidez
mais de mil partículas - mil núcleos - mil esferas
fluindo nesse rio andante
na disputa e na defensa
pelas mesmas artérias - mesmos veios
numa permanente luta de vida e morte
há uma força que lhes une e desune
lhes funde e aparta
o rio esse denso corpo que mergulha em si
pesado demais para chover
precipitar-se no ar
o corpo esse rio de sal e sangue
lento de correr que mal sossega - mal respira
ilhado de vento e vazio
há quem diga do corpo
de sua agudeza em mirar
mas o que há é miragem
centrífuga ilusão de ser
a refluir no verbo
o corpo é esse rio
cuja nascente e foz
disputam a força
o espaço
o tempo e as profundidades
no centro de um coração
***
o tempo fala ao teu ouvido
palavra-precipício
rasga teu pensamento ao meio
abre fina fenda
funda – escura
tira-te o fôlego
faz tua boca escassa de voz
podes ouvir os passos das palavras em fuga
o ranger de seus ossos ferindo o deserto do teu peito
é tudo tão silêncio em teu chão
e tu não sabes que o poema morreu
***
regressar a corrente
do tempo
reter tudo que nele corre por palavras
ler as horas de sua líquida linguagem
escutar a ressonância de suas claridades
de seus escuros
pela escrita transver o curso desse rio
a palavra – o caminho – a linha
ao desalinho dos sentidos
escrever - silente exercício
de viver a solidão do pensamento
***
ao esquecimento
o tempo não resiste
a memoria guarda o presente
na mesma tessitura do passado
reter o presente
dele ter imediata consciência
uma impossibilidade humana
viver é um tudo de lembrança e espera
***
tu que habitas essa ilha de memória
margeando passado
nessa terra de parto
vida
e
morte
olha
procura por debaixo das coisas miúdas
os sentidos partidos ao meio pelo tempo
recusa a morte
corrente-leito-de-espera
do rio que já não é
aceita as manhãs
do rio que será
o agora não é chegada
é partida
Wanda Monteiro, advogada, escritora, uma amazônida nascida à margem esquerda do rio Amazonas no Pará, tem seus textos publicados em várias revistas literárias, virtuais e impressas, tais como: Acrobata, Diversos Afins, Gueto, Ruído Manifesto, Mallarmargens, Zona da Palavra, Intacta Retina, Relevo, In Comunidades, LiteraturaBr e outras. Atua como colaboradora em vários movimentos de incentivo à leitura no Brasil. Obras publicas: O Beijo da Chuva, Ed. Amazônia, 2008; ANVERSO, Ed Amazônia, 2011; Duas Mulheres Entardecendo, Ed. Tempo, 2015; Aquatempo, Ed. Literacidade, 2016. A LITURGIA DO TEMPO e outros silêncios, 2019, Editora Patuá.