Apneia, de Beatriz Aquino
O romance de fisionomia intimista segue a linha da sondagem interior, de indagação dos problemas humanos. Por vezes se bifurca em vertentes de exploração de personagens angustiadas, desnudando seus traumas, problemas psicológicos, religiosos, morais e metafísicos, ou assume a vertente um tanto quanto autobiográfica fundindo os mesmos problemas e circunstancias na figura de um narrador-autor. Em suma temos que a também chamada prosa intimista é estilo literário em que o foco maior reside na exploração de aspectos humanos e sobretudo no tempo psicológico dos personagens envolvidos na trama.
Nesse campo como não lembrar de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles, Lya Luft ou Nélida Pinõn que levaram à extremos as características desse tipo de sondagem psicológica? E se nos referimos a escritoras é porque surge aqui e agora, uma que em livro de estreia, parece demonstrar talento e impulso suficiente para construir obra de significativa relevância que somente a posteridade há de confirmar. Trata-se da senhora Beatriz Aquino, autora do romance “Apneia”.
Apneia significa a interrupção da comunicação do ar atmosférico com as vias aéreas e pulmões, ou seja, é o ato de prender a respiração, mas também chama-se aquele mergulho livre, o esporte em que o mergulhador submerge sem utilizar equipamentos para respirar, ou seja, em apneia. Assim esse romance a propor mergulhos na alma:
“Sabe àquela hora do banho quando nos sentimos limpinhos e higienizados e olhamos sem querer para a água que escorre para aquele ralo escuro? Nunca se perguntaram como deve ser a vida dentro daquele subsolo úmido e cheio de formas de vida desconhecidas? Pois é isso. Eu fiz como Alice e me tornei minúscula para poder adentrar naquele mundo. Só que no meu caso não precisei tomar nenhum chá alucinógeno. Foi só deixar a bílis me trazer até a boca as memórias dos acontecidos e pronto. Cá estou nessa vertigem que acomete a todos aqueles que permitem que suas verdades mais obscuras tomem conta de si. Isso mesmo, me fiz em miniatura e prendendo o nariz como fazia aos cinco anos pra mergulhar no tonel que colhia água da bica, mergulhei no ralo.”
A narradora a certa altura do texto afirma que sua inspiração para escrever “Apneia” foi, de certa forma, o romance “Angústia” de Graciliano Ramos. E é mesmo um romance que explora o mundo inferior humano; às mais das vezes, o mundo infernal. Lá as almas são caçadas por um turbilhão demoníaco de angústias, como as almas do Inferno de Dante. Antes de irmos adiante, lembramos que há de ser ler a obra, como uma ficção. O mesmo Graciliano escreveu em “Linhas Tortas”: “Quem imagina que um escritor é capaz de rebentar caras, meter-se em espalhafatos, nunca viu de perto um desses homens. São as criaturas mais pacatas do mundo. O sujeito que se habitua a compor livros pinta o sete, mata, esfola. Tirem-lhe a pena e o tinteiro – desarmam-no”.
A autora apresenta-nos portanto uma personagem que aos 43 anos resolve passar a vida a limpo. E é então que se cria uma realidade metafórica envolvendo o ralo do esgoto onde o conjunto de realidades experimentadas pela personagem e pelo jogo ilusionista da criadora nos fisga inapelavelmente.. O romance é a ilusão de uma realidade e é a realidade de uma ilusão. Ao mesmo tempo em que se fundamenta na experiência do real vivido pela narradora, lança-se a múltiplas realidades imaginárias. Tudo – desde a ideia mais abstrata até os restos de shampoo, sabonete e outros fluídos indizíveis que escorrem pelo ralo do box, leva em si a marca do tempo, está saturado de tempo e vivências e neles ganha a sua forma e o seu sentido. A protagonista é introspectiva, intuitiva, capaz de descer aos seus infernos interiores para abeirar-se do indizível, do inconfessável.
Usa de linguagem que embora coloquial, é expressão trabalhada, aflita, profundamente criativa de um texto de ardorosa vida interior. Um mergulho à procura dos confrontos básicos do ser a partir mesmo de suas origens no Nordeste brasileiro. E são origens bastante humildes. A “apneia” acaba por se constituir uma viagem, uma fuga de si mesma e para si mesma. Em seu mergulho existencial faz de seus encontros com criaturas que vivem nos esgotos tais como as baratas e os ratos, as metáforas de certos humanos que encontramos pela vida a viver com insetos, ou ainda metáforas outras dos terrores de consciência que nos afligem. Vemos a meninazinha esquálida em uma infância miserável sofrendo todo tipo de carências. Assistimos a sua consciência se abrindo para a vileza do mundo. Imaginamos a cena da dor de uma criança rejeitada pelo pai sem saber por quê.
O texto vai se costurando através de links entre passado e presente, aproximando espaços e formas distintos através do tempo, e sobre uma crítica mordaz. Realmente; amplitude, lucidez e criticidade são traços que marcam a prosa dessa autora que consegue fabricar em seu texto o retrato de um mundo integralizado onde as personagens (protagonista inclusive), circulam em busca de um sentido para suas existências, e que nos leva a sentir por trás das imagens que vivem e ganham forma o exato sentido do mundo proposto. Brota então a necessidade imperiosa de resgatar verdades em meio à dissolução dos valores no mundo contemporâneo. Mas a ruptura estabelecida entre realidade e ilusão nunca é completa. É por isso que o romance nos faz crer na vida que dele emana, nas realidades possíveis e (não) imaginadas. Fato que nos permite compreender o jogo de espelhos, de imagens, olhares e perspectivas provenientes do texto romanesco, afeito a um mundo repleto de simulacros, aos quais ele, tantas vezes, aponta sua crítica subversiva.
A menina cresce, chega à pré-adolescência. Entra em cena, aquela noção fundamental da teoria de Freud (Complexo de Édipo) que se constitui no ponto central da psicanálise. Parte de nossa fraqueza constitucional que é um conceito tão caro à psicanálise e se refere à maneira como o ser humano precisa do outro. Nascemos seres incompletos, necessitados do outro para alcançar nossa completude biologica e psíquica. O desabrochar da protagonista em sua consciência vai deslindando um mundo verdadeiramente hostil, agravado em seu íntimo pela sombra da dúvida de ser ou não filha biológica daquele que fazia a figura de pai (machista e alcoólatra) de seus outros irmãos - 8 filhos que a mãe acabou criando sozinha. Transtornos de toda ordem, miséria, fome, humilhação, abusos sexual de adultos. Tempo de solidão terrível: sente-se sozinha e humilhada. Entra no Édipo (isto é, sexualiza o ‘pai’) e somente abandona tal sentir quando, anos depois, deseja outro homem que não ele. A dúvida quanto à paternidade biológica entretanto, permanece como sério elemento desestabilizador de sua própria sexualidade.
O que pode fazer conosco esse vale-tudo irresponsável com que tratamos nossa sexualidade? “vou ser como ele!”, grita-lhe o subconsciente. Que significa isso? Que a menina recalca um desejo difuso de ser possuída pelo pai, sem com isso renunciar à sua pessoa. Em outras palavras, deixa de considerar o pai desejável em suas fantasias edipianas e incorpora sua pessoa no eu. Assim, impregna-se de desejos e valores morais que o caracterizam, (única referência masculina que teve durante a infância/adolescência). Sexualmente transforma-se no retrato escarrado do pai. Identificada com certos traços dele, abandona a cena edipiana, abrindo-se para os futuros parceiros de sua vida de mulher. E é um desastre com altos e baixos de gozos e pouco, muito pouco amor. Sexualidade durante muito tempo encarada mais como pulsão no sentido de impulso energético interno que direciona o comportamento do indivíduo. O comportamento gerado pelas pulsões diferencia-se daquele gerado por decisões, por ser aquele gerado por forças internas, inconscientes, alheias ao processo decisional do ser. A certa altura a Femme fatale depõe: “Nessa época eu deitava os olhos sobre a presa, mirava e saltava. Era imbatível. Eles não resistiam. Depois se prestavam ou não para alguma coisa já eram outros quinhentos.”
Muito bem, temos então a ambiência do “amor” se formando na vida da mocinha, e que vai acontecendo nessa ordem: o amor carnal, reflexo do mero instinto, o do casamentozinho de ocasião com o primeiro amor. O divórcio, a viagem à Europa ela alta executiva de uma empresa, e a descoberta de um deus francês que é um verdadeiro sonho da ilha da fantasia (25 anos, lindo de morrer, atlético, astrofísico, inteligentíssimo e ainda por cima praticante de capoeira - o tesão personificado). Depois o sonho francês acaba e a criaturinha segue acumulando venturas e desastres amorosos. Enrola-se com um ator de teatro dado a chiliques, outro sujeito casado que não sabe que porcaria ele quer da vida, com um índio, segue a fila um conde italiano podre de rico, uma inferneira de ‘amores’, que ao final deixam memórias nem sempre aprazíveis na cabecinha daquela mesma menina de vestido amarelo que punha-se a esperar na porta de um casebre do Nordeste brasileiro, a chegada de um pai que a rejeitava.
E eis que socialmente esse romance funciona por outro lado, como resistência aos desvãos de uma época de graves intempéries existenciais que acompanham a humanidade. “Às vezes o mundo me parece um grande esgoto a céu aberto sendo pulverizado continuamente por um spray de flores do campo.” Nele a fusão de ideias e formas auxilia na compreensão da abordagem do falso e do verdadeiro pelo jogo estabelecido a todo o instante entre ilusão e realidade. Seja através do absurdo, do assombroso ou do verossímil, há sempre no romance o jogo de espelhos, através do qual a vida que surge à frente do leitor é – e não é – a real. Mais do que o duplo da experiência vivida, o romance manifesta a transgressão desta em diversas imagens – por vezes semelhantes, por vezes antagônicas – capazes de complexificar o labirinto de sensações e ideias que nos conduz ao espaço romanesco. É texto vasto e amorfo, prolífico e anárquico. Sua irregularidade complementa-se com seu desejo primordial: buscar a expressão do processo da vida em sociedade e de suas repercussões individuais.
O texto da senhora Beatriz Aquino acaba por se constituir em símbolo da ambivalência de um mundo que declina em seus valores mais sólidos – um mundo, liquefeito. Liquefeito fétido e contaminado a nos provocar devastadoras apneias. Em nossos dias o tal homo economicus é presa de uma instabilidade brutal. Uma ambiguidade insuportável, pois é ao mesmo tempo, mercador e mercadoria. Positivamente estamos diante de um texto que convida à transformação do pensamento representado da esfera individual para o coletivo. Aí a promissora busca de sentido para a vida e a resistência contra o sistema cruel e excludente de nosso mundo hostil.
E não podemos deixar de registrar que ela (já aqui a narradora-autora), amadureceu, e como! Mesmo desamparada e só, munida apenas das armas de sua sensibilidade, intuição e vontade, conseguiu abandonar as falsidades do mundo corporativo castrador e violento em que vivia, conseguiu apresentar peças teatrais em dez cidades, emocionando e levando mensagem de esperança, construiu praticamente sozinha uma casa na montanha e finalmente transfigurou o seu modo de viver para aquilo que verdadeiramente escolheu ser. Escritora e atriz. Veja-se o que pode a vontade!
“Apneia” ao refazer os caminhos de representação da realidade, a fim de promover maior reflexão sobre o fazer literário e a vida, preenche o papel humanístico da literatura. Constitui em nossos dias metáfora de um estado desesperador que nos atravessa e nos dirige interrogações em forma de linguagem literária, sobre violências físicas e psíquicas, a marginalização, as transformações globais, a superficialidade do ser, o estar no mundo, a perda da identidade coletiva e finalmente a função da própria literatura. Esta a apneia que acomete àqueles que humanamente se dão ao “luxo”, cada vez mais raro de simplesmente pensar.
TRECHO: “Logo eu, quem diria. Eu que fui por tanto tempo aquela rosa insuportável que cobrava um ágio sádico por sua beleza, que reclamava do vento, do frio, do sol, que hostilizava aquele pequeno exigindo mimos e cuidados sem fim. Eu que matava aquela criança em mim todos os dias. Logo eu saindo assim pelo mundo. As pétalas chamuscadas por tantos verões, as folhas caídas, esquecidas em algum outono rigoroso. Mas o caule ali, ainda firme e sábio em lidar com parasitas. A rosa ainda possui cor. E embora levemente pálida se prepara para ter seu cerne soprado aos quatro cantos. Pólen da vida. Há de se fecundar os solos com sorrisos infantis. É isso. Se fosse para escrever algo em meu epitáfio eu escreveria: “Passou pela vida como o doce eco do gargalhar de uma criança.”
Livro: “Apneia” – Romance de Beatriz Aquino - Editora Scenarium livros artesanais – São Paulo-SP. 2018, 272 p.
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(* )Krishnamurti Góes dos Anjos. scritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 27 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações, dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Jornal RelevO,Revista Subversa, Germina Revista de Literatura e Arte, Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de Portugal, e Revista Laranja Original. /