17 de setembro de 2018

Gostar de Ostras, de Bernardo Ajzemberg

Gostar de Ostras, novo romance do escritor, jornalista e tradutor Bernardo Ajzemberg (Ed. Rocco, 2017) alcança de forma despretensiosa o feito de lembrar o quanto as dificuldades da convivência em sociedade são pequenas diante da importância do outro na construção de nossas próprias identidades.

 

Jorge, um jovem publicitário, tem de lidar com a excentricidade de seus vizinhos idosos, Marcel e Rachelyne. A sinopse da obra, entretanto, descreve os personagens Marcel e Rachelyne de modo distinto; não como idosos, mas como octogenários. Nas primeiras páginas do livro somos convidados a pensar o quanto nossos rituais (ou a ausência deles), nossa forma de viver e a maneira como encaramos a realidade podem - muito mais do que nossa data de nascimento - dizer em qual fase da vida estamos.

Bernardo Ajzemberg, ao construir uma narrativa cujo enredo central tem a ver com a amizade transgeracional entre um rapaz, Jorge, e os Durcan, um casal francês, torna possível a interrogação: quantas podem ser, de fato, nossas datas de nascimento? Ao longo de uma vida, seja ela mais ou menos longeva, são muitas as pequenas mortes e nascimentos; a habilidade para lidar com o conteúdo simbólico abarcado por esses momentos definirá qual o episódio subsequente da nossa biografia.

Jorge, cindido em personagem e narrador, carrega em si mesmo uma divisão: entregar-se ao risco da vida ou permanecer entregue ao risco do imobilismo. Assim, constrói um excerto de sua história – capaz de conter passado, presente e futuro – a partir da relação improvável estabelecida com seus vizinhos, também eles submetidos à dúvida a respeito do que seja viver e morrer; e quais os riscos.

Jorge parece se construir enquanto narra: o vivido e o contado possuem igual status na obra que, como a vida, parece ir se escrevendo e inscrevendo em cada página por meio de associações livres e movimentos consequentes. Consequentes aqui, é bom que se diga, tem a ver somente com o estabelecimento de uma sequência. Isso porque o autor comete alguma inconsequência: o leitor talvez perceba na trama a presença de um episódio algo irrefletido, imprudente e quase leviano; estranhamento imputável a uma escolha consciente do autor ou às características de seus personagens? Talvez às duas coisas?

O livro, ambientado em uma São Paulo fiel à realidade, surpreende com reviravoltas de fazer questionar a motivação e ao caráter dos personagens, ao mesmo tempo em que eles nos cativam por suas contradições. Nesse sentido, Bernardo Azjemberg também faz uma metáfora interessante: ao mesmo tempo em que facilmente podemos reconhecer os espaços físicos ao redor, o que pertence à ordem dos sentimentos, das motivações e do desejo do outro permanece como território hostil; impossível aferir matéria palpável com tônus de verdade – ou realidade.

A realidade que interessa no livro é mesmo a psíquica que, não importando a idade real de cada personagem, permanece como lastro a dar sentido – ou não – tanto aos grandes acontecimentos quanto ao cotidiano. Por meio da intensa mudança que a convivência entre os protagonistas pode produzir na vida de cada um, o autor volta nossos olhos para o impacto que nossas próprias palavras e imagem produzem na vida das pessoas com quem convivemos.

Longe de causar pudor, essa ideia, aliás, alcança também as raias da experiência tecnológica: como construir laços que convidem a comparecer à vida, em tempos de redes sociais? Ou ainda: será que nossa atuação no espaço virtual é capaz de permitir avaliar o quanto palavras e ações direcionam nossas escolhas e as escolhas daqueles com quem nos relacionamos? O autor nos faz perceber quão ausentes estão as experiências concretas com os corpos e os objetos, não bastando a força e a potência da juventude par colocar os sujeitos em movimento – é preciso co-mover-se. Somos capazes de interagir com o mais próximo, de nos avizinhar de seus dramas e nos responsabilizarmos pelo seu bem estar sem o receio da dependência?

Pela contenção do impulso de julgar os atos do outro com a régua usada para medir a conveniência de certas escolhas pessoais, o autor assinala a tolerância como pilar dos laços humanos, essencial para um engajamento que não destitua o outro de si mesmo. É assim que leio, portanto, a presença do nazismo e da Segunda Guerra Mundial na narrativa, tendo sido essas experiências históricas duas expressões máximas da impossibilidade de convivência com a alteridade.

Os personagens, separados pelo tempo e por seus apartamentos-membrana (ainda que o isolamento físico e acústico das construções modernas seja precário) se relacionam sem nunca se confundirem. Bernardo Azjemberg nos entrega figuras que – embora não falem a mesma língua materna – criam uma linguagem própria na dialética das relações e com isso aprendem a conviver na maior metrópole do país sem renunciar cada qual aos seus desejos, dissabores, excentricidades e modos de funcionamento. Como ostras, os personagens filtram emoções enquanto suportam a invasão do mar: o mundo e o outro. Assim, o livro conserva múltiplos protagonistas e não deixa de ser uma obra sobre gente ordinária em busca de identidade e reconhecimento pelo amor e pelo pertencimento a um grupo, ainda que pertencer a um grupo possa também guardar a dimensão do trágico.

Experimentando ginástica, culinária, vida noturna, uma ida ao futebol ou a imersão na vida política fervilhante de uma passeata, fazemos – cada qual com suas lentes – tentativas nem sempre bem-sucedidas de separação (filtragem) entre público e privado, prazer e dever, moral e imoral, erro e acerto.

Sem temer erros e acertos, o autor traz aos leitores um romance em cuja composição cabem até excertos do diário de uma sobrevivente de Auschwitz e uma canção de Mahler. Eis, assim, uma obra atual e bem ao sabor do real: esse eterno misto de acontecimento e ficção; como são também as ostras: conchas onde estão guardados moluscos e o paladar secreto do mar.

 

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Andressa Barichello nasceu em São Paulo e reside em Curitiba desde então. É mestre em Direito e Literatura pela Universidade de Lisboa e co-fundadora do projeto de Coinspiração Cultural Fotoverbe-se.com no qual realiza vivências com artistas. É autora do livro "Crônicas do Cotidiano e outras mais" vencedor do prêmio Alejandro Cabassa pela União Brasileira dos Escritores do Rio de Janeiro, publicado em 2014 pela Scortecci Editora. Escreve contos e crônicas e é colaboradora do jornal literário Rascunho.