Álbum – de Ana Elisa Ribeiro
Diante da leitura dos originais do livro Álbum, de Ana Elisa Ribeiro (ed. Relicário, 2018), resolvi adiantar essa resenha. A poesia de Álbum é um primor. Trata-se, a princípio, de um livro temático em volta da fotografia, do ato de fotografar e de ser fotografado.
Tenho uma predileção por livros temáticos, por sabê-los difíceis de serem construídos: neles há sempre o risco de, justamente pela repetição, cansar o leitor. Escrever um livro temático interessante requer que o escritor alcance inúmeras nuances sobre um mesmo objeto, olhares que o alcancem, perpassem e ultrapassem. É então que o leitor descobre que o objeto sobre o qual o escritor se debruçou é apenas uma boa desculpa para falar de uma vida imensa e universal.
Já nos primeiros poemas, Ana Elisa Ribeiro compara o ato de fotografar com o ato de escrever; a exatidão das palavras teria que ser como a exatidão da luz para um fotógrafo, a fim de produzir a melhor imagem. Trabalho técnico, trabalho que envolve conhecer, estudar, traçar um caminho. Não por acaso, Álbum é o livro mais pensado da autora, segundo ela própria declara e podemos perceber. Que luz o poeta lançará, em que quantidade? Em qual cenário? Sobre que personagens? Porém, somente o trabalho técnico, sem o olhar poético, crítico ou instigante do fotógrafo não garantiria uma imagem que emocionasse. Assim é o trabalho com a palavra poética e, assim, Ana Elisa Ribeiro a realiza.
Em seguida, a autora nos leva à reflexão quase instantânea de quando nos deparamos com um álbum de família: o tempo. O interessante é que Ana Elisa Ribeiro nos entregará alguns paradoxos: o tempo visitado na fotografia não é o tempo vivido, mas o tempo vivido só pode se eternizar na fotografia, pois a memória não nos é confiável. Que tempo exatamente a fotografia captura? Se é que captura. E como acreditavam certas tribos indígenas, qual espírito ali se prende? Começamos a suspeitar de que é o espírito daquele que contempla.
Nos poemas de Álbum, evoca-se uma educação para a fotografia (educação para a vida), aprender a olhar, ver além da foto, ter atenção com o elemento ausente, o fotógrafo, os objetos reincidentes.
De modo sensível e profundo, Ana Elisa Ribeiro desenvolve o tema das imagens fotográficas e sua relação com as lembranças e nosso entendimento do passado, levando-nos a perceber a fragilidade de tudo o que consideramos memória, a fragilidade da experiência humana, em cujas pontas encontram-se nascimento e morte. A fotografia é aquilo que sobra quando o acontecimento já se foi.
Inevitavelmente, lembrei-me de Rilke e sua frase: “O modelo parece, a coisa de arte é.” Influenciado pela arte de Rodin, Rilke queria para sua poesia o que o escultor alcançava com a pedra. O que Rodin fazia, declarou Rilke em suas cartas, era prender o tempo, prender a beleza efêmera para que ela durasse, transformar aquilo que passa naquilo que fica.
Uma das leituras possíveis deste livro, é a de que Ana Elisa Ribeiro traz este Álbum em retribuição a outro. Assim como sua mãe passa as férias organizando fotografias antigas que sejam heranças dos filhos, Ana Elisa Ribeiro prepara o livro de poemas que registra a preparação de sua mãe, pois “nenhuma fotografia/ se mede/ em segundos”. Ela, ao rever o passado, movimenta-se em gratidão. E é por haver um encontro com o amor, com a dor, com a frustração, com a morte, com a resignação e com a alegria, que a poeta escreve. Há sempre mais em uma fotografia do que a própria fotografia, há sempre mais na palavra do que a própria palavra. Rever um álbum exige coragem. Dessa coragem, ela também nos fala.
PROCESSOS
O amor é um processo químico.
O amor é um processo biológico.
O amor é explicável pela história,
com implicações geoespaciais.
O amor é uma questão híbrida.
A fotografia é um processo químico.
A fotografia é um processo físico.
A fotografia é uma questão artística,
jornalística e tecnológica,
com implicações éticas e financeiras.
A fotografia é uma questão híbrida.
O que dizer de nossas fotografias rasgadas?
O que dizer destas fotos em que não estamos
lado a lado, e nem podemos nos tocar?
O que dizer das fotos que não tiramos
daqueles dias de amor nascente?
E destas fotos em que estamos
com os pares errados?
…
O que não é fotografia
dependerá da memória.
A memória é um processo químico.
A memória é um processo biológico.
A memória é uma questão para nós,
com implicações para o futuro.
O amor é um processo.
A fotografia é um processo.
A memória não é confiável.
O amor é sempre um processo.
A fotografia, não.
Olhar minuciosamente a fotografia
é um processo híbrido.
A memória é um processo que falha.
Resta confiar na ciência e no amor
INSTANTÂNEO #5
Só mesmo uma foto
para nos flagrar
no auge
de um quase
MENOS DUAS
sete irmãos
e irmãs
quase abraçados
tímidos no ato
da fotografia
meio posados
meio não
muito limpos
em suas roupas
bem passadas
cinco moças
dois rapagões
orgulhosos de suas
calças suspensas
sete irmãos e irmãs
na fotografia
em cima do piano
as duas irmãs —
mortas em acidentes —
continuam limpas
e desafiadoras
sobre o negro
piano fechado
os demais
irreversivelmente
envelhecem
***
Álbum
Poesia
Ana Elisa Ribeiro
Ed. Relicário
2018