Aos pedaços
Outro dia liguei para um amigo para dar os parabéns, desejar saúde, sucesso e todas aquelas coisas que a gente faz nessas efemérides para aqueles que queremos bem. Do outro lado, uma voz me pergunta: Rapaz, você ainda é do tempo dos que fazem ligação? Eu disse que sim, sou. Não pra todo mundo, mas quando consigo, prefiro ligar. Ouvi de volta que não se faz mais isso, que “hoje em dia” as pessoas se desejam parabéns é pelo WhatsApp mesmo, porque ela olha, fica feliz, e você não precisa tomar tempo de vida dela.
A reflexão já não é de agora, mas nos últimos tempos tem batido em mim com força: estamos vivendo relações cotidianas cada vez mais fragmentadas. Repare ao seu redor. Ultimamente, tudo o que cerca o homem ou mulher comum diz respeito a estarmos sem estar. Ou a não precisar estar mas dar a impressão de presença.
Volto a uma constatação, tantas vezes reafirmada, de que quanto mais inventamos coisas para (supostamente) facilitar nossas vidas, mais parecemos ter que nos engajar em algum tipo de atividade para não usufruirmos do ócio, como se isso fosse algum tipo de grande pecado. Que tempos tristes vivemos.
Aparentemente, a coisa funciona de maneira a que pareçamos o menos intrusivo possível na vida do outro. Eu mando a mensagem, que a pessoa do lado de lá da tela vai visualizar, e quando ela quiser ou puder, responde. Segundo o que ouço falar, essa é a nova forma de diálogo. E-mail, então, aquele negócio em que você acaba por escrever uns dois parágrados inteiros numa tela em branco, virou coisa de gente que parou no século XX. No máximo, uma pergunta rápida por inbox, via Facebook ou Instagram, porque ninguém perde tanto tempo lendo texto longo, ao que parece. Não com tanta demanda vindo de todos os lugares.
Na contramão da pretensa falta de tempo, hoje em dia quase não se ouve mais falar em filmes. Cada vez mais o que as pessoas querem ver são as séries, que se estendem por inúmeras temporadas, como se fosse um longuíssimo filme e suas continuações, todos emendados uns nos outros, fazendo com que os espectadores passem muitos anos de suas vidas acompanhando enredos que, em grande parte, já perderam há muito o brilho inicial. Mas há o seguinte detalhe: dá pra assistir de forma pulverizada. Cada episódio dura cerca de vinte e cinco a trinta minutos. Quem quer passar duas horas e meia assistindo a um filme hoje em dia, afinal? Esse parece ser o sinal. E os produtores, sabendo disso, arrastam suas séries em centenas de episódios que cabe na lógica de não perder tempo do mundo de hoje. Pensando bem, não é tão na contramão assim. Aliás, não é na contramão de coisa alguma, está é alinhadíssimo com a fragmentação dos nossos dias.
E no supermercado a coisa não parece ser muito diferente. Se antes observávamos as marcas diminuindo o tamanho de seus produtos para (de novo, supostamente) não terem que aumentar os preços, agora o que percebemos são porções individuais. Basta ir na seção de congelados e observar: lasanhas, feijoadas, tortas... há uma miríade de produtos feitos para quem mora só, é o que dizem. Ou para quem quer ter a desculpa de não dividir com ninguém, claro.
Essa ideia de fragmentação chegou inclusive à literatura. Dia desses estava lendo um artigo no qual editores nos Estados Unidos defendiam a ideia de que, nos romances, os capítulos devem ser curtos. O motivo? Se os capítulos forem longos, ninguém lê, porque cansa, perde-se muito tempo, ou a pessoa não se sente motivada a levar adiante muitas e extensas páginas antes de uma quebra. Aparentemente, estamos mesmo em frangalhos.
Os dias que correm quase não abrem espaço para a contemplação. Escrever uma longa carta, conversar durante mais de uma hora ao telefone ou num restaurante com alguém de quem se gosta por vezes parece algo tão impraticável que é quase como se fosse um crime. A solução alcançada é pedir pelo número, entrar no restaurante já perguntando quanto tempo o prato demora pra ficar pronto, esculhambar com a empresa nos comentários do aplicativo se a entrega passar dez minutos do que está dito no tempo previsto.
É ao permitir que nos tornemos reféns do tempo que nos tornamos, também, seus escravos. Tudo de uma tal maneira tão bem arquitetada por um sistema maléfico e cruel, que nos rouba não apenas a nossa capacidade de nos espantarmos com a beleza ou com as grandes desigualdades do mundo, rouba também nossa saúde, física e mental, e o nosso repertório possível de amor. Singeleza, ternura, delicadeza, parecem hoje ser palavras de gente fresca, cheia de caprichos.
Nosso estar no mundo não pode se subjugar a um tempo em que parecemos ter perdido o controle, sob risco de continuarmos a nos perder de nós mesmos. Não é à toa que a população com problemas psiquiátricos tem crescido em todo mundo. Estamos nos adoentando porque, querendo estar em toda parte e dar conta de tudo, esquecemos de nós mesmos, incapazes que estamos de reconhecermos, aceitarmos e reverenciarmos (por que não?) nossos próprios limites. E enquanto caminharmos nesse estado catatônico de regressão, terminaremos por chegar, novamente, às cavernas.