23 de fevereiro de 2018

A poesia de Samarone Lima

Samarone Lima é jornalista e escritor. Nasceu no Crato, Ceará, e vive no Recife desde 1987. É autor dos livros jornalísticos Zé: José Carlos Novaes da Mata Machado - reportagem biográficaClamor - a vitória de uma conspiração brasileira e Estuário - crônicas do Recife. Foi finalista do prêmio Jabuti com o livro-reportagem Viagem ao crepúsculo, em 2010, e com o livro de poesia A praça azul & Tempo de vidro, em 2013. Recebeu, com o livro O aquário desenterrado, de poesia, o 2º Prêmio Brasília de Literatura e o Prêmio Literário da Biblioteca Nacional, ambos em 2014.

 

RESILIENTE

 

Resiliente.

Assim me chamou nas dobras

A antiga amiga.

 

No corpo que torceu e retorceu

Ao seu centro noturno

E desigual.

 

M espantalho sem biografia

Aguando as quimeras de si.

 

A ruminação como defesa

Ou como certeza.

 

As brasas que ardem

No tempo da espera.

 

O quase dono de si.

 

O vaqueiro cego

Buscando um cão

Brincando com os espinhos.

 

Capaz de um destino lógico

De amarrar narcisos

Aos vasos inconclusos

Do jardim devastado.

 

De cerzir o passado

Sem álbuns, sem a matéria dos homens.

 

Como quem escreve segredos

Com aspas imaginárias.

 

*

 

UM NOME À MINHA SOMBRA

 

Eu poderia jogar as mãos no mar

E endurecer porque há o infinito

E me completa.

 

E poderia recolher

O que disseram ser meu

E baixar os olhos em súplica

Como uma intenção desabitada.

 

Nada disso me levaria

A pontos extremos

(E sinto a respiração

Dos mesmos pássaros que sonhei).

 

Acedo. Aquieto.

A imensa ternura, engolfada pelas ondas

Murmura qualquer coisa indecifrável

Que julgava minha.

 

Elaboro a espera.

Mancho de branco o que restou

(As espumas diriam)

E sei que há um nome à minha sombra.

 

É quando o mar percebe a súplica.

E tudo devolve.

 

*

 

FORMAS DO DIA

 

Às vezes, ao escolher os sapatos

Erramos o dia.

 

E a cor, a forma,

Nos levam ao ponto primordial:

Como saímos de casa.

 

Às vezes, a falta de uma bênção

Nos leva ao segundo erro:

Saímos de casa desassistidos

E nos perdemos do próprio dia.

 

Às vezes, a falta de um aviso

De um recado

De um aceno

Nos faz seguir sem os pequenos gestos

Que nos salvam o dia.

 

Quase sempre

Voltamos para casa

Tão vivos

E nem sabemos

Que sapatos, bênçãos, avisos

Nos salvam a vida.

 

*

 

INTENÇÃO

 

Esta dificuldade terna e antiga

De dizer adeus

De batizar as coisas simples

Com nome e sobrenome.

 

A intenção de morrer calado

De desfazer os pactos antigos

Dos que vieram antes.

 

A saudade morna e calma

Arrebenta os dias.

 

Desvãos sazonais entre os ossos

Em qualquer primavera

O mais triste nas privações do inverno.

 

A intenção de catalogar uma por uma

As folhas que caem

Como partes da família.

 

A certeza de que o chão descobre

Sua chance de amanhã.

 

Na esquina distante

Que sempre chega.