[Nosso] Instinto animal
Tenho o prazeroso hábito de ler na cama tarde da noite, curtindo todo o ambiente criado à minha volta: o barulho do ventilador ligado na velocidade mais forte, a luz do abajur projetada sobre minha cama, o silêncio que só a madrugada é capaz de trazer.
Com a porta do quarto fechada e a leitura iniciada, ouvi um barulho dentro da minha própria casa. Correria. Um segundo depois, pareceu-me que alguma coisa havia sido derrubada. Mais correria. Interrompo a leitura, com o coração acelerado: minha gata não fazia aquele barulho. Quem tem criança ou bicho sabe do que estou falando. Com o tempo, aprendemos a reconhecer todos os barulhos dos nossos rebentos – incluindo aí os bichos – todos. Olhei para o relógio. Passava de uma da manhã. Teria alguém invadido meu apartamento? Que ideia ridícula, pensei, tentando me convencer. Em poucos segundos, o barulho cessou, como por milagre, como se fora um vendaval, chuva rápida. A paz novamente instalada, nem me dei ao trabalho de averiguar o que teria acontecido, já que o livro que eu estava lendo quando aquele escalabro começou estava tão bom... Mais tarde, quando eu for beber água, vejo o que foi, disse a mim mesmo.
Pois foi nessa atmosfera que dei continuidade ao romance que estava lendo, quando deu vontade de ir ao banheiro. Ato contínuo, marquei o livro e levantei-me. Foi quando vi uma minúscula pena junta à porta. Olhei para a janela ao lado, por impulso, mesmo sabendo que eu a havia fechado desde o final da tarde por conta das muriçocas. Mas de onde diabos?..., pensei.
Menos de um segundo depois, o clique se deu na minha cabeça.
Aquele barulho infernal tinha sido um pássaro que entrou pela janela da sala, constantemente aberta, já que eu gosto de espaços ventilados. Já no corredor as marcas do desespero: penas, muitas penas. Eram pequenas, algo entre cinza, marrom e branco, espalhadas por todo o corredor. Avancei até a sala, certo de que iria encontrar corpos estraçalhados, minha garganta aos engulhos, antevendo a necessidade de limpar vísceras de pássaros de madrugada.
No entanto, nada. Olhei sobre, atrás e debaixo do sofá, sob a mesa, em todas as partes onde poderia haver resto de alguma coisa. Continuei a ver penas, espaçadamente, e só. Ao ligar as outras luzes, vi marcas da carnificina e de uma batalha perdida: sangue nas paredes, em várias delas, assinalando que houve luta pela vida, tentativa de fuga, mas que minhas gatas, sagazes, jovens, instinto afiado para a caça, talvez capazes de pular distâncias que nem eu mesmo imaginava, impediram qualquer chance de sucesso.
Calculei que pelo menos dois pássaros entraram na minha casa e, desorientados, ficaram ao alcance das minhas Aiko, Akira e Yuki, que os perseguiram até que eles, cansados, famintos e tontos, se tornassem presa fácil. Eu já havia visto a cena em outros carnavais. Às vezes, elas pareciam não ter interesse em acabar com a vida do pássaro logo de uma vez; antes, pareciam querer brincar com ele sadicamente, sabendo quem sairia derrotado ao final. Depois de um tempo, ansiando por outro entretenimento, faziam sua refeição in natura.
Peguei-me pensando o quão próximos estamos da natureza felina – no tocante ao comportamento – tanto quanto estamos da natureza de outros bichos que acompanham a raça humana há milhares de anos, como o cachorro, por exemplo. Quem aprendeu com quem? O certo é que ao presenciar uma cena como essa da minha sala, percebo que nós, também, os ditos racionais, agimos por impulso, por instinto, fora o fato de sermos nós, humanos, os maiores predadores que caminham sobre a terra sem medir consequências, como se o futuro fosse sempre fonte renovadora de esperança e recursos, quando não necessariamente é, nem de uma coisa nem de outra. Nos obsequiamos do pensamento crítico como se pudéssemos nos dar a esse luxo, como se não fossem existir outras gerações, e assim vamos minando nossa possibilidade de dias melhores. Somos não apenas animais que agem por instinto, mas egocêntricos também: o outro, que ainda nem nasceu, que se arrebente!
No dia seguinte pela manhã, ao retirar do varal a toalha para ir tomar banho, vi, com olhos cansados e um corpinho tão minúsculo que parecia um diminuto farrapo em forma de penas, um pássaro no parapeito contíguo ao varal. Então, houvera, sim, um sobrevivente! Por certo, enquanto os demais se digladiavam entre gatas e paredes, este pequenino teve a sorte de encontrar um outro caminho, onde aboletou-se até que algum destino o acolhesse.
Coloquei a toalha no ombro e retirei-o de lá. Se ele pensou em voar, ficou só no seu pensamento-instinto: ele não ofereceu resistência. Fiz uma pequena concha com a mão e depositei-o dentro dela. Em seguida, fui até a janela da varanda e o coloquei no parapeito. Claudicante e inseguro, ele não quis – na verdade, não pôde – ir embora. Não imediatamente. Minhas gatas já começavam a querer me rondar. Hoje, não, eu disse a elas. Falei para o pássaro que lá fora era onde ele deveria estar. Que iria morrer em breve se ficasse ali. Voltei rapidamente na cozinha com ele na mão e abri a torneira devagar. Deixei que uns poucos pingos d’água caíssem sobre sua cabeça. Voltei para a varanda. Ele pareceu entender que era do lado de lá que a vida estava. Caminhou pelo parapeito, criou coragem, e voou numa tal velocidade para uma árvore do outro lado da rua que era quase como se não tivesse passado por uma provação na noite anterior. Da árvore onde ele foi parar, ouvia-se o som de outros pássaros. Não era muito querer acreditar que ele iria sobreviver, afinal. Com aquele voo determinado, estava provada a sua resiliência.
Dentro de mim, começou então o carnaval.