O herbário enquanto enigma
Já há algum tempo, a independência editorial de casas jovens é um dos grandes vetores da introdução de novos autores e de novas propostas no circuito literário do país. A Moinhos, nesse mesmo sentido, vem construindo um catálogo bastante interessante, antologiando autores consagrados sob propósitos renovadores e servindo como brecha para o lançamento de autores que, fazendo justiça ao que escrevem, buscam seu espaço.
No caso de Carl Jóhan Jensen, que teve recentemente seu trabalho organizado e publicado pela Moinhos, a lógica é similar, ainda que não se encaixe exatamente em nenhuma das categorias anteriores. O autor, nascido Tórshavn, capital das ilhas Faroe, aparece como nome consagrado da literatura nórdica contemporânea, cuja penetração no Brasil, por outro lado, é pequena. Vencedor do prêmio feroês de literatura (Mentanarvirðisløn M.A. Jacobsen) em três ocasiões (1989, 2006 e 2015), Jensen foi indicado cinco vezes ao prêmio de literatura do Conselho Nórdico, sendo três delas pela sua poesia: Hvørkiskyn (Neutro), em 1991, Tímar og rek (Tempos e marés), em 1998, e September í bjørkum sum kanska eru bláar (Setembro nas bétulas que quiçá são azuis), em 2008. O poeta, romancista, tradutor e ensaísta, cujas obras já aparecem vertidas ao dinamarquês, ao norueguês, ao alemão, ao holandês e ao inglês, aparece em português pela primeira vez.
O livro Nona manhã (herbário poético), traduzido por Luciano Dutra, sintetiza, em suas 72 páginas, um projeto poético que merece ser olhado com alguma atenção. Ainda que sua poesia não ocupe um espaço de fratura ou de renovação brusca, a abordagem de regiões bastante tradicionais — tais como a metapoesia e o soneto, além de figuras como a metáfora — é realizada com cuidado e consciência. É visível, de imediato, que o autor compreende o espaço que ele e sua poesia ocupam na tradição literária (exemplo preciso do moderno que é, inserido no percurso histórico, automaticamente tradicional).
Orðið er ítøkiligt
Orð
Ið er tøkiligt
Orð sum er orðið
Ið
ER
**
A palavra é concreta
Palavra
Que é abstrata
Palavra que se tornou a palavra
E que
É
O poema acima (entre tantos outros que poderiam ser encontrados no volume publicado pela Moinhos) pode servir como síntese das construções metalinguísticas que atravessam o livro. A palavra palavra, entre outras que recorrem, aparece em mais da metade dos poemas reunidos em Nona manhã — há também, constantemente, substantivos como língua e linguagem; verbos como dizer e falar.
(não poderia ser diferente: no primeiro poema, que também dá título ao livro, os versos finais dão o tom: Na nona manhã/ a palavra veio num sonho).
Por outro lado, um poema como Early September Blues ilustra o ponto de articulação fundamental da proposta metapoética de Jóhan Jensen: a natureza (ou, mesmo, Natureza). A linguagem enquanto terra; a língua enquanto olhar telúrico; o poema que deriva do solo, que brota. Os versos iniciais do poema podem ilustrar:
eina bjørk skal eg, greinarnar, sum
blomstra skal eg. villrek íu september,
dríva flog gjøgnum moldina, skal eg,
umloysta, dríva sundurlyndið í tær
**
uma bétula hei de, seus galhos que
florescem hei de. argumento extraviado em setembro,
instilar o pólen na terra, hei de,
comezinha, incitar em ti a discórdia
A articulação da bétula com o argumento; do pólen e da discórdia. A linguagem indissociável daquilo que, enquanto natureza, a precede.
O ensaio de Guðrun Gaard presente no final do livro chama atenção para uma ideia incontornável, que orienta a poesia de Carl Jóhan Jensen. Gaard afirma: “sua poesia é quase barroca com sua linguagem torneada e seus floreios verbais.”
Ainda que seja exagero afirmar a linguagem de Jensen como barroca, a leitura dos poemas revela, de imediato, como a produção do feroês é guiada tanto em forma quanto em conteúdo pela ideia de Natureza: os galhos e folhas, o solo e os enigmas, de que os versos falam, aparecem também como constituintes de sua estrutura. Em Na Manhã de Domingo (Sunnudagsmorgun), há apenas uma palavra por verso, às vezes duas: a estrutura enxuta se desdobra sobre a própria ideia do “Poema que esfria”, do “Anjo que não chega”. No sentido oposto, os sonetos da seção Cortejo Fúnebre 1951 (Líkskari 1951) ficam a um passo da prosa, presos apenas à forma clássica, enquanto abordam questões densas, entre o telúrico e o metafísico.
O herbário poético de Carl Jóhan Jensen é, portanto, essa pequena estufa em que se cultiva o adorno da linguagem; um espaço de afastamento de questões contemporâneas em direção a uma aproximação de questões atemporais. A conexão com a tradição poética (há menções a Emily Dickinson e William Wordsworth) reafirma essa busca pelo essencial.
O enigma, nesse mesmo sentido, é o centro do labirinto linguístico, onde, por vezes, não é possível chegar; onde, por vezes, não se deve chegar — o percurso, por vezes, é o próprio centro do labirinto. Nona manhã é um mapa para perder-se na linguagem.
Cabe anotar, ainda, algumas questões acerca da tradução (empreendimento que merece, sem hesitação, destaque). O gaúcho Luciano Dutra, mestrando em tradução pela Universidade da Islândia (e bacharel em língua e literatura islandesa desde 2007) abre o volume publicado pela Moinhos mapeando seu próprio percurso pela poesia de Jensen, com o objetivo de desembaralhar o novelo linguístico. É Dutra quem afirma, ecoando Guðrun Gaard, a poesia do feroês enquanto desafio: decifra-me ou devoro-te.
Ainda que se possa lamentar a tradução dos sonetos sem a métrica ou as rimas, ou a suavização de uma sonoridade que é evidente no original, a coragem e competência do tradutor em mergulhar nesta selva ainda não catalogada merece todo o tipo de aplauso e atenção, ultrapassando e superando qualquer lamento. A densidade e o enigma florescem também em português, e o ensaio de Dutra que precede a poesia de Nona manhã precisa ser lido — antes de qualquer coisa. O mergulho em uma cultura, uma mitologia, uma linguagem.
É, por fim, fundamental dividir o enorme mérito de Luciano Dutra com a Moinhos, que aposta em poesia quando a poesia não é popstar; que aposta no enigma quando a palavra de conforto é tão bem recebida. Nona manhã é a interrogação selvagem que busca ser domada; que busca leitores e respostas.
Talvez, na verdade, nem tanto respostas: apenas a busca.
A busca pelas respostas.