29 de janeiro de 2018

Dois para lá, dois para cá, ao som de um zumbido

“Mas é melhor sobreviver do que ser digno.”

A frase destacada acima foi extraída de um dos poemas de Vanderley Sampaio em seu primeiro livro, Bolerus (Scortecci, 2017). Ela dá a tônica das dicotomias entre prazer e incômodo, o belo e o feio, o lado de cá e o lado de lá, que são derramadas nas páginas completas por oitenta poemas. De pegada existencialista, sem abrir mão do humor, dos trocadilhos e da ironia, o livro tira-nos para a dança da vida logo no poema de abertura:

Boleros ou Bolerus

Boleros podem ser canções.
Bolerus é um zumbido.

Boleros também são casacos.
Bolerus é um inseto.

Boleros podem ainda ser chapéus.
Bolerus é um besouro.

Boleros são até mesmo malandros.
Bolerus é um erro.

Mas pouco importa o que são ou podem ser.
Pois pouco são do que realmente importa.

Podem ser o que já foi.
Ou aquilo que ainda será.

Boleros, no fundo, são lembranças.
Bolerus é o descaso com o lembrar.

Boleros são apenas iminências.
Bolerus é o incômodo que elas causam.

Numa dança em que se possa parear,
Boleros e Bolerus são opostos, justapostos.

Aqui há uma oposição semântica e um novo jeito de encontrar o já conhecido, de repisar um terreno já habitado e habitável, agora, com instabilidade. Uma das epígrafes, citação de Fernando Pessoa já adianta a postura do poeta: “Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho.” É a partir desse “desconforto amigável” que Sampaio enche os olhos do leitor com poemas como Tento:

Tento

Tento.
Porém, não a contento,
Vejo-me ao relento,
procurando contentamento.

Contenho-me;
tenho
tempo,
mas não detenho
temeridade;

temo
o tema
temível,
e fujo dos temários;

tendo
tudo
tão
translúcido,
transmigro;

transubstancio-me
em um trôpego;
tropeço, caio e
aturdido
me atrofio.

Tento...

A aliteração é recurso constante na obra, forma de fixar no leitor o zumbido do besouro em diversos poemas, incluídos aí Zumbidos palmares (I e II). O poeta também flerta com a poesia concreta, em poemas como Nus estados:

Os nus estados
Que se deitam em nós
Que se deixam em nós
Que se desatam em nós
Que se deságuam em nós
Que se embaraçam em nós
Que se entrelaçam em nós
Que os sinos dobram por nós
Que
se
vão

O sino, simples em sua composição, traz-nos um embaralhamento de coisas “inusitadas” e nos faz perguntar: afinal, quais são esses “nus estados”? Certamente, uma pergunta que cabe a cada um dos seus leitores. E este sino, o que faz? O ritmo também tem espaço privilegiado em Bolerus, como no poema Acostumar, onde é ternário: “

Cansei-me de tudo/
Cansei-me do mundo
Cansei-me no fundo
De me atormentar
(...)

Cansei do tributo
De ser um matuto
Do fim resoluto
De me acostumar

Mas se ritmo, rimas naturais, concretismo e aliterações estão presentes na forma, o conteúdo, por vezes angustiante, coloca-se em primeiro plano. Não é à toa que Sampaio nomeou o site que criou de “Absurtos”. O “absurto”, aqui, dá o tom, especialmente no poema-jogo Atrás do muro:

Tem um cara atrás do muro,
pensando que sabe onde está.
E um outro cara atrás do muro,
pensando que tem um cara atrás do muro,
pensando que sabe onde está.

Qual lado do muro é o atrás
em que se pode estar?
Quem está dentro,
pode estar fora de algum lugar?
E quem está fora,
pode estar dentro do estar?

Difícil é saber
de que lado você está!
Porque você tanto pode estar
do outro-lado-do-muro,
quanto pode estar
do outro outro-lado-do-muro.

E que outro há de ser definido como o outro?
Qual perspectiva deve predominar?
A de quem está aqui
ou a de quem está lá?
E onde é o aqui e o lá?

Aqui é onde você está,
sob o seu ponto de vista,
ou é onde eu estou, sob o meu?
Ou são as duas coisas?
E se são as duas, onde é lá?
Onde ninguém está?

E se ninguém está
em algum lugar,
onde está ninguém?
Poderia ninguém estar
ou deveria ninguém não estar?
E se alguém estivesse?

Se alguém estivesse,
não haveria ninguém
ou haveria?
Mas se houvesse ninguém,
como alguém poderia estar
do outro-lado-do-muro?

E que outro?
E que lado?
E que muro?
E que alguém?
E que ninguém?
E que trás?

E que trem?
E que trai?
E que vem?
E que vai?
E que sem?
E que sai?

E que dia?
E que dei?
E que lia?
E que lei?
E que ria?
E que rei?

E que tia? E que tei?
E que mia?
E que mei?
E que cia?
E que sei?

Não sei.
Pode ser que nada seja mesmo
como parece não ser.
Ou não seja mesmo
como parece que não seja
mesmo que não.

Não é preciso escrever muito sobre Bolerus. O poema acima é um daqueles que dizem de tudo um pouco sobre a obra.