O mundo opaco do novo Dom Casmurro
Segundo romance de Lucrecia Zappi, nascida em Buenos Aires e residente, atualmente, em Nova York, após ter passado pelo Brasil e México, Acre (Todavia, 2017) é um romance amargo como o próprio nome. Conta a história de um triângulo amoroso entre Oscar, o narrador-personagem; Marcela, sua mulher, e Nelson, um malandro com quem Marcela já havia fugido antes do casamento.
A história começa na adolescência dos três jovens. Oscar e Nelson são paulistanos, mas foram mandados a Santos por suas famílias. Marcela então namorava Washington, um jovem traficante barra-pesada primo de Nelson. Quando Washington é executado, Nelson e Marcela somem por três meses.
A narração é alternada entre esse tempo da adolescência e o tempo presente, quando Oscar está num casamento acomodado com Marcela, já vivendo os dois em São Paulo. Nelson desaparecera do mapa, mas Oscar sequer suspeitaria de que ele estava bastante próximo: sua vizinha de parede, a velha Vera, sua amiga, é a mãe de Nelson. E trinta anos depois ele volta.
Assim como no Dom Casmurro de Machado, há uma obsessão doentia de Oscar em relação à volta de Nelson. Sua mulher, que já era indiferente, começa a sumir e ficar com o celular desligado. Mas ele mesmo sabe que ela sempre foi assim, que Marcela precisa de espaço.
Há indícios de traição de Marcela na narrativa: esses longos períodos de ausência, uma suposta mudança no seu comportamento (mas, afinal, quem observa isso é o personagem em primeira pessoa), e até o testemunho do vigia do prédio – Décio, desafeto de Marcela e alvo de suas implicâncias. Como se pode notar, não são provas cabais da traição, mas o olhar em primeira pessoa do marido ciumento – como o de Bentinho em Dom Casmurro.
Há lacunas importantes na história, porque Oscar menciona que se casou com Marcela e se mudaram para São Paulo por conta de uma gravidez. (Fica a pergunta, o pai é mesmo Oscar?). O fato é que Marcela sofre um aborto espontâneo, e com o tempo abre um restaurante de bom faturamento, enquanto Oscar toca uma loja de lustres herdada do pai. Esses vazios narrativos são instigantes e conduzem o leitor até o final do livro.
Por exemplo, não há uma referência explícita ao amor entre Oscar e Marcela, se é que ele existiu. Mas Oscar, sim, ama Marcela, que na verdade é uma chata e bastante implicante.
Oscar e Nelson passam a competir, como no passado: em Santos, Oscar usou um canivete para cortar a corda da prancha de surfe de Nelson e este o arrebentou de pancadas. Oscar foi parar no hospital com traumatismo craniano.
No fim do livro, depois da morte de Vera, mãe de Nelson, é quando acontece uma última queda de braço. E de assertivo, mesmo, nada: o livro acaba como se fosse um segredo mal ocultado.
É importante notar de que Lucrecia Zappi escreve com leveza, mesmo quando trata de questões como xenofobia e homofobia, quando aborda as partes mais violentas do livro. Acre é acre mesmo, mas fluído, uma página chamando a outra, um capítulo pedindo o outro. Lucrecia é corajosa: chama para si a morte de um boliviano por um médico, síndico do prédio, chamado Adriano, que gosta de bancar o justiceiro. Igualmente, mostra a homofobia contra Décio, que descreve como se fosse uma coisa banal – colocando-se entre as personagens, expondo, assim, as mazelas de uma sociedade de classe média que vive em meio aos mendigos e à sujeira, que se enoja da travesti amiga de Décio; uma pequena burguesia que quer “limpar” o mundo à sua volta. Sendo assim, não se trata apenas de uma história de um triângulo amoroso (que, tão bem composta, já se bastaria), mas também é um retrato da pequena burguesia de São Paulo e suas mesquinharias.
A habilidade da autora está em fazer de Nelson uma espécie de mito, um homem que vendia madeira ilegal no Acre mas estava por ali mesmo, entre Oscar e Marcela, mesmo durante seu sumiço. Acre é um não lugar, é uma instância mental, quando Nelson volta. E essa instância mental leva tanto à ação quanto à inação, porque é como se Nelson fosse, na realidade, quem manda na parada. E no último capítulo, percebe-se, no pavor de Oscar, que Nelson de fato tem motivos para fazer-se temer. Quanto a Marcela, é feita de pequenos pedaços: uns olhos, o cabelo escorrido, a empresária de sucesso, sempre implicando com algo ou alguém. Uma mulher que sequer merece ser amada, apesar de suas covinhas, mas que é o pivô desse triângulo amoroso insuperável.
O livro é bem marcado no tempo: leitores entre 40 e 45 anos vão se identificar com a moda e os costumes dos protagonistas nos anos 80 e podem conviver bem com as personagens no tempo atual, como se fossem seus vizinhos. O livro não é descritivo demais, mas oferece elementos culturais importantes dos dois períodos. Uma obra muito especial, lançada por uma pequena editora (todavia) – e pequenas editoras têm, atualmente, muito o que mostrar, apesar dos resultados dos grandes prêmios literários, que concentram seu favoritismo nas grandes casas editoriais.