A poesia de Sofia Mariutti
sofia mariutti nasceu em são paulo em 1987. formou-se em letras-alemão pela usp e trabalhou até 2016 como editora da companhia das letras, onde foi responsável pela reedição das obras de paulo leminski, ana cristina cesar e waly salomão, entre outros livros. organizou antologia comemorativa dos trinta anos da editora, o livro é um poema (2016) e o livro das listas: referências musicais, culturais e sentimentais, de renato russo (2017). para a companhia das letrinhas, traduziu do alemão os livros a orquestra da lua cheia (2010), a visita (2016) e os voos de thiago (2016). a orca no avião é seu primeiro livro.
a orca no avião
a baleia dá pra ver
lá do alto do avião?
o que sente a baleia
quando passa o avião?
os iates milionários
os veleiros os navios
petroleiros as escunas
se confundem com as ondas
lá do alto do avião
ó universo úmido
e azul ó céu salgado
quanto desse branco é de espuma
quanto é de nuvem quanto é
de estrelas que se espelham
— constelação cetácea
de seres astronômicos? —
no filme black fish as orcas
são levadas do sea world
na costa americana para
o loro park numa ilha
da espanha
de avião
as baleias assassinas
nunca matam humanos
na natureza
só dentro dos parques
criados por humanos
as orcas na verdade
são golfinhos
os cetáceos se conectam
por cantos que alcançam
centenas de milhares de metros
os humanos não se entendem
muito bem dizem que de
perto ninguém é normal
inventaram devices
para amar-se de longe
a orca no avião
será que ouve
o canto da orca
ancorada no atlântico?
a orca no avião
será que canta?
ó mar salgado
quanto do teu sal
são lágrimas de baleias tristes?
*
falso cognato
1
há no céu uma constelação de
poeira chamada el polvo de estrellas
seus tentáculos alcançam a terra
nos laçam e oscilam pra lá e pra
cá com o vento o que alguns
chamam destino
às vezes esses braços pegajosos
nos deitam tangentes na noite e a nós
não resta senão
2
se eu disser que só hoje descobri que
o ferro que circula no meu sangue
vem de dentro das estrelas
we are stardust
- a joni mitchell já sabia
desde os anos setenta
e o jorge drexler descobriu
nos anos dois mil -
somos polvo de estrellas
vamos falar do pó de onde
viemos pra onde vamos
falar polvo de estrelas
é uma imagem bonita
enquanto olhamos pro céu
você desenha um polvo
jurando estrelas eternas
em pretenso latim
pó não é polvo eu devia saber
é só um falso cognato
tú eres un falso amigo
eu devia saber
melhor era fugir dos teus tentáculos
*
ocaso
quando você ficar careca
e eu não tiver mais dentes
pra ranger à noite
unhas pra roer de dia
talvez use postiças
quando você ficar careca
eu não vou ver a bolsa
sobre meus olhos vai ter
caído talvez eu faça a
plástica que mamãe
sempre sonhou pra mim
seu pau não vai mais ficar
duro ao me olhar de saia
sem calcinha deitada na rede
da varanda de uma casa
sem parede com vista pro mar
o gozo na cara
com vista pro mar
não, não
você vai estar careca
e nós dois ainda lamentando
a separação dos nossos pais
*
réquiem para o alto rio negro
nos aguaçais os aguapé
— cruz, canhoto! —
bolem... peraus dos japurás
de assombramentos e de
[espantos!...
manuel bandeira
nos igarapés do rio uaupés
cada igreja erguida é um túmulo
cabari japú tiquié timbó
riachos não ainda desenhados
nos mapas de navegação virtual
nas margens do rio içana
cruzes foram içadas
e fincadas com empáfia
no topo de templos cristãos
atestando “aqui jaz o povo tal”
hupda tukano siriano baniwa
pira-tapuya todos enterrados
sob os internatos salesianos
desana não é decano
dow não é deão
não há missão sincera que ensine
casamento camiseta de algodão
culpa plástico perdão
triquíase tracomatosa
os shorts jeans quando se molham
ficam pesados e atrapalham
o movimento das pernas
das mulheres do alto rio negro
essa igrejinha de fachada
tão charmosa azul e branca
está vendo? tome tento
é um túmulo
sobre as sobras de uma noite de festa
resta apenas um demônio
sombra negra
justificando o que ninguém entende:
o suicídio de duas jovens índias
cada uma em um canto da aldeia
batizada pela igreja
santa cruz do cabari
a corda que sustenta os sonhos numa rede
quando amarrada no pescoço
inaugura um sono profundo
que as livrará de todo o mal
sucumbir ao abismo da existência
esse modo tão branco de morrer
a palavra de cristo não sei mas
a questão de camus
chegou até lá
nos igarapés do rio uaupés
nas margens do rio içana
quinhentos anos de cortejo
e os índios seguem carregando as cruzes
do seu próprio funeral
nos igarapés do rio uaupés
nas margens do rio içana
hoje todos os afluentes do alto rio negro
vestiram preto