Uma leitura que convida para o abismo
Todos os abismos convidam para um mergulho (Patuá 2017), da carioca radicada no DF Cinthia Kriemler, tem o mesmo estilo cáustico dos seus livros de contos Sob os escombros e Na escuridão não existe cor-de-rosa (semifinalista do Oceanos em 2016), pela mesma editora. Quem já conhece Cinthia pode esperar dela o que ela mais sabe fazer: dar um coice no estômago do leitor.
Essa sua estreia no romance é primorosa. Para dar vez e voz a situações e pessoas em estado limite, ela criou Beatriz - personagem-narradora -, uma assistente social que atende casos de violência doméstica e abusos de crianças, entre outros. Então, na medida em que vão surgindo novos casos, novas personagens entram em cena, novos fatos são jogados na nossa cara.
Mas a vida de Beatriz no enredo não é só o fato de ela ser assistente social. Ela ama o que faz, mas utiliza o próprio trabalho como uma válvula de escape. Culpando-se por não dar atenção suficiente à filha, que aos 16 se suicida, tem ainda outra forma de desviar a atenção da própria vida: o sexo indiscriminado e inconsequente.
Impressiona a qualidade do romance como um todo. As personagens nos agridem com suas qualidades e defeitos, a ação se passa de forma coerente e direta, sem enfeites ou eufemismos, Beatriz é uma personagem extremamente verossímil, apesar das aberrações, também verossímeis, que ela vivencia no seu cotidiano.
Ela se relaciona com personagens instigantes, como Bernardo, o ex-marido que ela ainda ama, e sua nova mulher; a mãe, um verdadeiro desastre nesse papel, que agora está com Alzheimer; o irmão, o exemplo de sucesso e bom senso que tanto vazio causa na protagonista; a psiquiatra com quem se trata desde que se deixou levar por um impulso numa situação limite, que, sem que Beatriz aceite, a leva a se conhecer melhor; e, finalmente, as vítimas de exploração e abuso com que ela depara todos os dias.
O livro, naturalmente, não tem um final feliz. Nem para a protagonista, nem para os outros, exceto uma menina extremamente deprimida que parece começar a reagir sob os olhos de Beatriz, que se pergunta, ainda, como foi que não percebeu a depressão da própria filha, Laura, que começou já na infância.
Os capítulos são curtos e bem posicionados, conferindo ao enredo um aspecto de simultaneidade bastante correto. É o tipo de livro que se lê de uma vez só e nos puxa para todos os abismos. Para sentirmos, para adoecermos, para nos levar a uma experiência artística sublime em sua tragicidade.
Leia um trecho do romance:
Gostaria de me sentar e contar a ela muitas coisas que eu sei. Que a depressão é uma doença que come por dentro. Que as reações de Isabel são tentativas de expulsar o mal-estar que a incapacita de muitas maneiras diferentes. Que enquanto Isabel estiver sentindo dor é porque existe uma pessoa preservada dentro dela, uma pessoa que pede ajuda: eu ainda estou aqui!, eu não consigo respirar! eu não quero morrer! Queria avisar a ela que depois que passam o choro, a raiva e a impotência o que resta é a apatia, a hora em que tudo parece estar bem novamente. Calmaria. Alívio. E então o caos.