Uma volta em torno da escrita criativa
"Vision", do Jefferson Muncy.
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Um, o começo da volta.
O sentido quem dá é o leitor.
Começo as minhas aulas de escrita criativa com essa frase. No momento que um livro é parido, quem deu luz a ele deixa de existir. Um livro respira por conta própria. Tem RG e CPF. Não adianta dizer que ele é sobre isso ou aquilo, meu querido autor. O dono do livro é quem lê o livro. Ele, com seus olhos e dedos, que diz sobre o que é a sua parada. O lado bom é que existem vários leitores, logo, a sua obra terá vários sentidos.
O escritor pode passar horas e mais horas falando, no final das contas, o único argumento que vai convencer o leitor se aquilo funcionou ou não é a própria obra. O livro existe, tá ali, e fim. O resto é o resto.
Desorganizar para organizar.
Essa é a segunda frase que aparece nas minhas aulas.
A criação é caos. A bagunça antecede a ordem. Quando perdemos algo em casa, muitas vezes temos que rasgar caixas e jogar o conteúdo delas no chão, abrir gavetas e armários, bagunçar e revirar tudo, e só depois encontrar o objeto perdido. Se não cutucarmos as coisas, nunca encontraremos o que buscamos.
A criação literária e artística me remete a isso. E me remete a ser uma criança. A criança é rainha em cutucação de coisas. Ela não tem medo de meter o dedo onde diz “não toque”. Ser criança é ser artista. Por isso penso que escrevo contos de fadas grotescos e surtados para maiores de idade. E olha, essa frase não é original, ok? É uma variação de uma frase do César Aira, que disse que escreve contos de fadas para leitores de Lautreamónt.
A ideia de escrever como uma criança me atrai, porque a imaginação da criança não tem limites. Se você diz para uma criança ir para a direita, ela vai para a esquerda. Ela entende a mecânica das coisas através do caos e não de manual de instruções e racionalidade. Acerto e erro, erro e acerto. Uma hora ela consegue, pode ver. Se você perguntar a uma criança o que é o céu, ela não vai lhe dar uma resposta óbvia. Uma criança é uma poeta 24 horas por dia. O comportamento delas é uma verdadeira oficina de criação experimental. São pequeninos aprendizados móveis e em estado bruto para um artista.
A meu ver, a literatura deve assombrar como o impacto da descoberta para uma criança. Vocês se lembram de se encantarem quando descobriram algo completamente inédito? Essas lembranças, a maioria, residem na infância. Na vida adulta parece que já vimos de tudo.
Para a criança é tudo novo e espetacular.
Exemplo: lembro como hoje da primeira vez que vi uma praia.
As ondas pareciam ter 80 metros. Na minha cabeça, eram gigantescas de verdade. Místicas e seculares. Lembro que quando me mudei para Recife, não conseguia sair do mar. Até criei um personagem chamado O Homem Sargaço. Eu rolava nos sargaços e ia pra cima d’A Onda, a minha arquirrival. Travei confrontos memoráveis com A Onda. Ganhei alguns, perdi outros, mas a experiência sempre me encantava... Mesmo nas terríveis e ensopadas derrotas. Quando eu era o Homem Sargaço, ninguém podia me segurar. Eu era invencível. Podia fazer tudo. Essa sensação é a minha ideia de criação. Ser um Deus louco e meio tirano, um arquiteto esquizofrênico brincando com maquetes invisíveis, porém reais naquele mundo idealizado.
Uma criança dona do mar.
Até hoje essa sensação me assombra de verdade.
Walter Benjamin disse que “as crianças brincam com os resíduos do mundo”. E Freud já escreveu um ensaio sobre escrita criativa, onde disse que “a escrita criativa, assim como sonhar acordado, é uma continuação, ou um substituto, do que um dia foi a brincadeira de uma criança”.
Brincar, criar, resíduos, sonhar.
Palavras que fazem parte do meu epicentro criativo.
Um dia, em João Pessoa, nadei de madrugada no mar. Foi uma das sensações mais impactantes da minha vida. Nadar no meio da escuridão, mergulhar no preto, olhar ao redor e enxergar o nada comendo o nada. Um transe onírico.
O reflexo da lua neste dia tinha a forma de uma criança envolvida em sargaços.
Até hoje não sei se sinto alegria ou medo quando me lembro disso.
No livro “Em águas profundas – Criatividade e Meditação”, o pintor e cineasta David Lynch diz que “se você quer pegar um peixinho, pode ficar em águas rasas. Mas se quer um peixe grande, terá que entrar em águas profundas”. Essa metáfora para a criação é uma referência e tanto para mim.
Lembra um trecho do meu romance Febre de Enxofre:
"[...] O escritor talvez seja isso: um bicho que busca luz no centro da escuridão, onde habita a obscuridade mais densa."
É por aí. Uma busca incessante por peixes ou luzes que talvez nem existam. Existir ou não, tanto faz. O que importa é a busca, o mergulho.
Quando comecei a estudar escrita criativa, visualizei tudo isso. As memórias da infância, a força do passado, a imaginação infinita. Tive a sorte de fazer um mestrado de escrita criativa onde o conhecimento mais expandia do que fechava, talvez seja porque a diretora da instituição é uma poeta, sei lá, mas eu saí com mais perguntas do que respostas. E para mim, é assim que se começa a aprender de verdade: perguntando e não respondendo.
Algo, inclusive, que toda criança ama fazer: perguntas, perguntas e mais perguntas.
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A escrita criativa é uma disciplina focada em investigar os procedimentos do texto literário, o refletindo e esmiuçando, através da teoria e prática.
A escrita criativa nos entrega ferramentas para sugar a linguagem, entender o projeto de um autor e o que cada palavra significa no contexto empregado.
Uma das melhores coisas que aprendi com a escrita criativa foi a ler. Escrever sempre é uma consequência, mas aprender a ler é uma arte que requer estudo. Quando digo ler, digo aprender a investigar um texto literário de forma clínica, romper os parágrafos e jogar suas tripas na mesa para estudar a carcaça da trama e da língua.
Aprender a criticar o texto de um amigo além do “tá ok” e “não tá ok”.
Eu acredito que ter uma empatia com o texto, de entendê-lo em sua profundidade e não só na superfície, é algo que auxilia e muito no processo criativo. E essa empatia pode ser desenvolvida de diversas maneiras. O caminho não é tão simples como pintam por aí.
Sempre indico diversos textos literários para os meus alunos, mas não para eles lerem de qualquer jeito. É para ler como se fossem estudantes de medicina ao redor de um cadáver, prestes a aprender a metodologia de uma autópsia. Mostro as ferramentas afiadas para eles e pergunto: “e aí, como dissecar este corpo agora?”. Ler como escritores. Ler se perguntando “como está feito um texto?” e “quais são seus artifícios?”. Se questionar é fundamental para entender a estrutura de uma obra literária. Uma formação de leitor – saber ler bem e não ficar brincando de quem leu mais livros – pode brindar um escritor com ferramentas para a sua escritura.
O “pouco” contundente ganha do “muito” raso.
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Muitas pessoas pensam que essa ideia de teorizar e refletir sobre o ofício literário e seus procedimentos seja algo novo. Não é. Cito a “Poética” de Aristóteles, que até hoje serve de referência. Temos a “Filosofia da Composição”, de Edgar Allan Poe, e obras e textos sobre o tema de Gustav Flaubert, Kafka, Proust, Tolstói, José de Alencar, Burroughs, Shirley Jackson, dentre outros. E nos Estados Unidos, em 1936, John Gardner criou o pioneiro programa de escrita criativa da Universidade de Iowa. Ou seja: não é algo recente.
No Brasil, um dos cursos mais famosos e antigos de escrita criativa é o de Assis Brasil, no Rio Grande do Sul. Temos também outros escritores que a ensinam, como Julie Fank, Marcelino Freire, Flávia Iriarte, Raimundo Carrero, Sidney Rocha, Joca Reiners Terron, Noemi Jaffe, Angélica Freitas, etc. Apesar desses exemplos citados, a escrita criativa ainda é uma disciplina tímida em nosso país. E claro, como em qualquer outro nicho, ainda é possível visualizar muitos oportunistas que prometem vender todas as respostas para o seu cliente-escritor se tornar um autor profissional, renomado e premiado. Falácias nada criativas.
Na Argentina, em Buenos Aires, tive uma experiência intensa, onde fiz parte da primeira turma do mestrado em escrita criativa da Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), dirigido pela poeta Maria Negroni. A partir deste mestrado que ampliei meus conhecimentos literários e comecei a ministrar oficinas e cursos de escrita criativa. Um caminho sem volta.
No meu mestrado aprendi que esse papo de dom é furada. Ninguém nasce sabendo. Criatividade é suor. O escritor precisa ter o “que” e o “como”. O que dizer e como dizer. O como é a argamassa e a mão de obra. O trabalho duro. Todos nós temos histórias para contar, mas nem todo mundo carrega as ferramentas necessárias para contar essa história. A escrita criativa “empresta” essas ferramentas. Sem juros.
Raimundo Carrero, sobre isso, diz:
“[...] É preciso, portanto, dominar as ferramentas para depois dar o salto, a transcendência que transforma o ofício — os estudos, o aprendizado, a determinação — em arte. Os pintores são mestres nisso: primeiro fazem estudos individuais detalhados de mãos, de rostos, de bustos, depois recorrem aos modelos e, só mais tarde, enfim, à obra”.
Concluo com essa frase do Ezra Pound, tirada do livro “ABC da literatura”:
“Não importa saber por qual perna se começou a fazer a mesa, desde que ela tenha quatro pernas e fique de pé, depois de terminada”.
Fazer literatura é uma forma de marcenaria.
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No mestrado, aprendi que a escritura é uma epistemologia do não saber. Nela, a obsessão e a forma abrem caminhos para aquilo que não podemos dizer.
Boa parte dos meus professores eram poetas, cineastas, artistas plásticos, e isso nos ofereceu uma variedade muito ampla e rica de conhecimento. Um conhecimento transversal. Diversas perspectivas de se ver a escritura. Foi um local onde eu expandi ao invés de fechar. O objetivo ali não foi ratificar conceitos nem buscar certezas, e sim, criar espaços para encorajar as dúvidas e perguntas, pois a verdadeira escritura sempre é uma arte subjetiva, acima inclusive da matéria que esteja sendo estudada.
O poder da ambiguidade e do estranhamento no texto foram os meus maiores ganhos.
Passaram diversos professores na minha formação porteña. Cito alguns marcantes, como Martín Kohan, Maria Sonia Cristoff, Maria Negroni, Luis Chitarroni, Eduardo Stupia, Adriana Amante, Pablo de Santis, Guillermo Martinez, Alan Pauls, Alejandro Tantanian, e o meu tutor, Guillermo Saavedra.
Saavedra me auxiliou no trabalho de tese, que basicamente era escrever uma obra literária e uma defesa dela, que a diretora chamava de “una poética”. A minha obra foi o romance Febre de Enxofre, hoje, publicado pela editora Penalux.
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Em 2015, o meu projeto Escrita Criativa JP foi aprovado no edital paraibano FIC (Fundo de Incentivo à Cultura Augusto dos Anjos). Foi um projeto de curso de escrita criativa em João Pessoa, de três meses, e com seis professores: eu, João Matias, Maria Valéria Rezende, Mylena Queiroz, Roberto Menezes e André Ricardo Aguiar. No final dos três meses, Guillermo Saavedra ministraria uma masterclass de encerramento. Tudo perfeito. Sem dúvidas, um dos projetos literários que mais me engajei para acontecer.
Quando voltei ao Brasil, no começo de 2016, descobri que a verba do FIC ainda não tinha saído. Lamentavelmente, o projeto está “pendurado”, mas assim que sair darei um gás para concretizá-lo. Foi através da divulgação deste projeto que fui chamado para ministrar aulas de escrita criativa em Campina Grande, onde vivo.
Inicialmente, a experiência me inquietou. Hoje, sinto-me realizado nesta posição.
Aprendi a ler de tudo, pois um professor de escrita criativa precisa estar aberto para todos os tipos de literatura, afinal, só assim é possível avaliar tecnicamente uma obra que fuja do seu agrado. Não foi fácil, mas aprendi. Comecei a buscar referências para esmiuçar determinado texto com o intuito de entender a sua proposta, fugindo alucinadamente da questão do gosto, algo tão subjetivo.
Busquei entender e compreender a visão do meu aluno. Isso é mais importante do que qualquer coisa. Ao entender a visão – o projeto literário –, aí sim posso entrar na parte técnica. Sem empatia não vinga. E depois de conhecer essa visão, sinto-me realizado em saber que estou entregando algumas ferramentas, procedimentos e modos de usar a linguagem para eles.
Ampliar o universo de uma pessoa é gratificante, até porque você amplia o seu próprio universo ao fazer isso.
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Faz dois anos que estou ministrando cursos e oficinas de escrita criativa. Até agora tá valendo. Campina Grande, João Pessoa, Recife, Boqueirão e Sousa. Já passei por esses lugares e aprendi muito. Agradeço bastante a todos os meus alunos pela paciência e por permitirem que eu ofereça um pouco do que sei para eles.
No final das contas, ensino aquilo que me acompanha: mergulhar no desconhecido e achar o assombro. Passo para os meus alunos a dicotomia processo x resultado. No processo podemos achar esses “monstros” que iluminarão as nossas obras. O resultado é só uma parte do todo. Uma metonímia acidental. Aquela coceira que faz com que nós escrevamos. Não acredito em cursos que vendem a ideia de formar escritores. Um escritor se faz por anos. Se faz escrevendo. Cursos ou oficinas fazem parte da estrada, mas não são a estrada completa.
Uma professora-poeta me dizia que os escritores têm obsessões e elas os acompanharão em todas as suas obras. Um escritor pode dizer que mudou o estilo, que está escrevendo sobre outra coisa, é outra linguagem, “mudei, juro”, mas não. Tá lá. A obsessão. Sempre ela. E como sempre, só o leitor afinco deste escritor perceberá isso. Ela não foge, o acompanha até o fim.
As minhas obsessões são as que citei no início do texto.
E escrever é abraçar as suas obsessões.
Tento passar isso para os meus alunos: as obsessões. O processo e o confronto. As leituras. A prática.
Ensino as técnicas, mas sem esquecer a pulsão, que deve vir junto de toda criação artística.
Ricardo Piglia disse que “a literatura é a experiência mais intensa que existe”. E é isso.
Seja sacra ou profana, sem gana, não rende.
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Aproveito para agradecer aos locais onde ministrei cursos e oficinas: UNTREF, CLESX, SECULT, Casa Contemporânea, Centro Cultural Banco do Nordeste – Sousa, FLIBO e Sesc.
Abaixo, algumas fotos do que já passei, de quem já esteve comigo e do que vem representando a escrita criativa na minha vida. A literatura é uma atividade solitária, mas nem sempre. Gracias.
Sete, fim da volta.