A “língua brasileira” nas crônicas de Lima Barreto
Homenageado da FLIP deste 2017, Lima Barreto é um nome hoje bem estabelecido no imaginário de quem vive minimamente o ambiente literário. Já há algum tempo, as obras do autor carioca já figuram em currículos do ensino básico e em listas de leituras obrigatórias para alguns vestibulares.
Em geral, Lima Barreto serve como ilustração de inserção de um negro, proletário, anarquista, alcoólatra etc em um circuito literário muito valorizado, tendo morrido no mesmo ano da tão importante Semana de Arte Moderna. Além de sua ficção, indiscutivelmente relevante na historiografia literária brasileira, o autor ganhou certa notoriedade por ter escrito, enquanto internado num hospício em função do alcoolismo e da depressão, inúmeros diários, de cunho extremamente autobiográfico.
Dessa maneira, ao longo do tempo, Lima Barreto ganhou contornos que priorizam a interface vida-obra, apenas tangenciando ou mesmo negligenciando certos aspectos estéticos que, muito além da biografia, fizeram do seu texto algo que, quase cem anos depois, ainda merece revisitas constantes em busca de novas perspectivas. Em 2016, por exemplo, a Companhia das Letras lançou uma extensa antologia de textos inéditos do autor, Sátiras e outras subversões, organizados e anotados por Felipe Botelho Corrêa, professor de literatura e cultura brasileira na King’s College London. Os textos, que abordam política, economia e arte, podem ser lidos, sem dúvida, como atestado da vasta erudição do autor; contudo, são também exemplos de mecanismos estéticos praticamente inéditos na literatura do início do século XX.
Em introdução ao seu Clara dos Anjos, por exemplo, Lima Barreto escreve Amplius!, texto que debate centralmente a questão da linguagem em sua obra. Em resposta a uma certa “carta anônima”, o autor reafirma suas convicções de propor uma linguagem popular, acessível a todos --- rompendo com um ideal “coelhonetista”, ou mesmo parnasiano, de língua literária. Já ao final do texto, Lima afirma: “... eu tento também executar esse ideal em uma língua inteligível a todos, para que todos possam chegar facilmente à compreensão daquilo a que cheguei através de tantas angústias”.
Antes, o autor já havia cravado:
“Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm em comum e dependente entre si.”
Além de:
“Não desejamos mais uma literatura contemplativa, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos que os adoravam.”
Em Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos, Beatriz Resende, professora da UFRJ, traça um paralelo essencial entre a representação da capital fluminense e os mecanismos linguísticos empregados pelo autor. A certa altura, Resende menciona a “perda da aura” da linguagem como uma característica da época que Lima Barreto incorpora, especialmente, em suas crônicas, “representação literária do fragmentário, do ambíguo, do efêmero”.
Dessa maneira, é fundamental reconhecer Lima Barreto como um autor de importância estética indispensável, não deixando, obviamente, a questão biográfica ao largo do debate, mas, ao mesmo tempo, não colocando toda a sua obra à órbita --- ou em dependência --- de questões extralinguísticas. As inovações na linguagem que o autor adotou a seu trabalho são suficientemente relevantes para que, esteticamente, sua obra pare em pé sem qualquer esteio biográfico.