Contos forjados no fogo
Difícil terminar de ler um dos ótimos contos de “As coisas que perdemos no fogo” (Intrínseca, 2017), da escritora argentina Mariana Enriquez, sem estar condenado a guardar deles uma forte impressão. São, boa parte, como aqueles pesadelos raros que, pela força de suas imagens e a tensão da situação de perigo vivida, não se desmancham no ar tão facilmente quando acordamos.
Mariana é hábil em compor personagens – para mim, é o que ela faz de melhor – em alternar pontos de vista, detalhes fixos e randômicos, descrever o espaço, sem rodeios, compor diálogos com fluência e verdade, ou seja, é uma autora que maneja muito bem os recursos da prosa realista moderna ao mesmo tempo em que se abre para o insólito, o absurdo do mundo, e incorpora, re-trabalha, à sua maneira, referências e elementos do horror: assombrações, serial killers, demônios, casas mal-assombradas, delírios psicodélicos, crimes violentos, crianças e adultos estranhos/paranormais (seus melhores personagens, aliás, sempre enigmáticos e imprevisíveis).
O livro tem início com o que talvez seja seu melhor conto, “O menino sujo”. A fusão de uma realidade já aterrorizante por si mesma – um bairro de subúrbio onde um menino – inacreditavelmente sujo – ronda em situação de mendicância com a mãe viciada em crack, e onde as práticas violentas do tráfico se fundem a rituais igualmente violentos e obscuros. Tudo sob o ponto de vista de uma mulher de classe média que decidiu morar na casa que havia sido dos avós paternos, e que, por isso mesmo, apresenta, desde o início, a sensação de não estar nunca à vontade no espaço. É um conto de intensidade crescente, que acompanha o desarranjo mental da protagonista conforme o avanço da trama que a liga à mãe viciada, ao menino, às histórias macabras do bairro.
“A hospedaria” tem um desfecho previsível mas segura a atenção do leitor na relação entre as personagens. Florencia, a protagonista, uma garota em férias com a família em uma hospedaria, tem uma paixão represada pela amiga Rocío, que mora nas redondezas. Quando elas entram na hospedaria na madrugada com bifes de carne crua para inserirem nos colchões dos quartos, uma vingança de Rocío contra Elena, a proprietária que demitiu seu pai, já sabemos que algo estranho acontecerá. A hospedaria, que há muito tempo havia sido um quartel militar, tem fama de mal-assombrada. No entanto, é mais no que Florencia esconde de Rocío, nas cenas descritas com sutileza, e menos em uma possível aparição sobrenatural, com o pano de fundo da ditadura militar da Argentina, que se encontra o mistério e a beleza do conto. Afinal, quando as jovens caminham nos corredores, existe algo que pode vir à tona e que, para a protagonista, bate tão aterrorizante quanto as assombrações. Florencia vai se revelar a Rocío? Qual será a reação da amiga? Há duas névoas de origens diferentes – uma natural, outra sobrenatural – formando uma só atmosfera de suspense. O que me fez pensar nesse continho como uma narrativa alegórica do despertar da sexualidade de Florencia. Isso colocaria em perspectiva o desfecho aparentemente fácil do enredo, possibilitando novas leituras. De toda forma, não é menos que brilhante a maneira como Mariana Enriques mistura terror e tensão sexual no conto.
Florencia sentiu um medo brutal: tinha certeza de que ia iluminar uma cara branca que correria na direção delas ou que o facho de luz deixaria ver os pés de um homem escondendo-se num canto. Mas não havia nada (...).
Rocío fez sinal para que ela se apressasse. Estava linda na penumbra, pensou Florencia, com o cabelo preso num rabo de cavalo e um pulôver escuro, porque de noite em Sanagasta sempre fazia frio. No silêncio do edifício vazio podia escutar sua respiração agitada. Estou supernervosa, Rocío sussurrou-lhe ao ouvido e levou ao peito a mão de Florencia que não carregava a lanterna. Olha como meu coração está batendo. Florencia deixou que Rocío apertasse sua mão contra aquela maciez e teve uma sensação estranha, vontade de fazer xixi, um formigamento embaixo do umbigo. Rocío soltou a mão de Florencia e se meteu num dos quartos, mas a sensação ficou ali, e Florencia teve que agarrar a lanterna com as duas mãos, porque a luz tremia.
O livro tem seu ponto mais fraco, talvez, em “A casa de Adela”. Uma narrativa convencional de crianças explorando uma casa mal-assombrada, dessas que você termina com a sensação de já ter visto o “filme” inúmeras vezes. Ainda que a autora utilize o clichê de forma consciente (as crianças, por exemplo, são fascinadas com filmes de terror americanos), o desenlace previsível do enredo parece falar mais alto do que a complexidade dos personagens ou de algo a mais que tenha ficado subentendido.
Em “Pablito clavó um clavitto: uma evocação do Baixinho Orelhudo”, o livro retoma o fôlego, em um conto incômodo sobre um guia turístico que faz tours em Buenos Aires apresentando aos turistas histórias sobre assassinos famosos. Um deles, Godino, com a alcunha de Baixinho Orelhudo, é o que mais impacta os turistas, por ter sido um assassino de crianças. Obcecado pelas histórias, Pablo começa a ver o espectro do Baixinho no ônibus turístico, o que se relaciona, de alguma forma, com o momento em que vive: ele acabou de ter um filho.
Em “Fim de curso” e “Verde vermelho alaranjado”, Mariana apresenta o que faz de melhor: personagens estranhos e perturbadores em desarranjo mental crescente. O segundo, um rapaz que decide abrir mão do convívio social e não sair, nunca mais, de seu quarto. Sua única abertura para o mundo é um aplicativo de mensagens instantâneas e a web cam, por onde a narradora acompanha sua perda gradual do senso de realidade. Em “Fim do curso”, temos, em um dos melhores contos do livro, o estranho caso de Marcela, uma menina em que ninguém prestava a atenção na escola até ela começar a ter crises e se machucar em público. Faz isso sem esboçar dor, com indiferença, retirando unhas e cortando as bochechas. Acompanhando-a ao banheiro, porém, a narradora, sua colega de turma, descobre que a menina não tem controle sobre seu corpo e vive, na verdade, uma situação de desespero, acossada por uma figura maligna (ou pela insanidade). Por trás dos demônios e dos extremos da bizarrice a que os personagens de Mariana Enriquez se levam, pode estar subentendido um dos grandes males deste tempo, a depressão: o demônio que mora dentro, fere, dilacera e parece, a quem o vê de fora, apenas indiferença à vida. É uma das leituras possíveis.
Outro conto que vale ser comentado é o que dá nome ao livro e fecha a coletânea, “As coisas que perdemos no fogo”. Achei a primeira metade incrível, uma narrativa com potencial para ser a obra-prima da coletânea, mas que falha, talvez, por mostrar demais suas intenções. Por nos oferecer uma leitura pronta, redondíssima.
Trata-se da história de uma seita cada vez maior de mulheres que queimam os próprios rostos - de início, em solidariedade a mulheres que tiveram o rosto queimado por seus maridos e ex-namorados, depois, como ato político. Um ato no mínimo problemático, incômodo: que tipo de protesto é esse em que as vítimas machucam a si mesmas para atingir seus agressores? Por outro lado, vamos entendendo que as “queimadas”, como elas as chamam, são uma alegoria mais complexa: elas parecem estar dizendo “o mundo machista e feminicida nos trata como objetos, então ofereceremos ao mundo ‘objetos’ quebrados, rompidos totalmente dos padrões estéticos que nos oprimem”. O problema é que em determinado momento as personagens não apenas parecem dizer, elas dizem, de fato, o que tudo aquilo significa, e um conto como esse enfraquece muito sem o assombro da dúvida, do mistério, que nos permite fazer uma leitura própria e conflituosa a partir do inconsciente – lá onde a literatura não panfletária chega e arruma seu ninho de símbolos. Talvez o conto perca a chance de chegar tão longe, e bater de uma forma mais profunda, quando começa a pulverizar seu enigma em explicações várias colocadas nos diálogos:
“As queimas são feitas pelos homens, menina. Sempre nos queimaram. Agora nós mesmas nos queimamos. Mas não vamos morrer; vamos mostrar nossas cicatrizes” (...).
“Não vai parar, tinha dito a garota do metrô num programa de entrevistas na televisão. Vejam o lado bom, dizia, e ria com sua boca de réptil. Pelo menos não existe mais tráfico de mulheres (...)”.
Ou, ainda:
“Conto-lhes que sempre queimaram a nós, mulheres, que nos queimaram durante quatro séculos! Não conseguem acreditar, não sabiam nada sobre os julgamentos de bruxas, percebem? A educação neste país foi para o cacete. Mas têm interesse, pobrezinhas, querem saber.”
Se o último conto queima as lacunas, e perde algo de sua potência, o saldo final do livro é extremamente positivo e garante um lugar para esses contos em nossa memória dispersa de leitores contemporâneos, lá no espaço reduzido e à prova de fogo onde guardamos as leituras marcantes.
Mariana Enriquez, sem dúvida, é uma autora que merece ser mais lida e traduzida por aqui.