A normalista em meias três quartos
Lucíola havia cerzido a meia três quartos do pé esquerdo no dia anterior. Normalista, seguia para a escola com saia pelos joelhos, camisa muito branca e gravata, além das meias e sapatos de verniz. O tempo parecia instável. Como sempre, e por recato, levava os livros e cadernos à frente, escondendo o busto, já proeminente. Tinha quinze anos e umas tetas maravilhosas, mas virgens, como deveriam ser até o casamento. Mas não havia pretendentes, era muito jovem.
Sua mãe se gabava da beleza, do juízo e do bom senso da filha. Também costumava dizer que Lucíola era muito prendada. Mal sabia ela que a garota mal sabia cerzir as meias, o que ela percebeu a caminho da escola, quando o sapatinho de verniz começou a “comer” a meia esquerda.
O mal-estar foi imediato. Vexada, abaixava-se discretamente, de quando em quando, para puxar a meia, assim, meio de lado, apenas; mas, depois de algumas tentativas, logo percebeu que teria de se descalçar para arrumá-la, o que não seria de bom-tom assim em público, nem adequado para uma moça como ela.
Continuou seguindo, cadernos e livros agarrados ao busto, puxando, vez em quando, a meia insubmissa, da melhor forma possível. Mas não havia como reparar o mal que estava feito.
Devemos dizer que Lucíola era a melhor aluna da escola, tirava não apenas as melhores notas como tinha as melhores relações e se previa para ela um futuro venturoso como professora. Ela queria cursar a universidade, ao mesmo tempo em que daria aulas no ginásio. Mas nada disso haveria de se comprovar se a meia esquerda não se comportasse.
E não se comportou, ao contrário; o sapato comia cada vez mais a meia, irritando-a de tal forma que lágrimas começaram a subir aos olhos, enquanto ela seguia pela Avenida Paulista. Aquilo tinha de acabar! Que maçada, uma meia que não para no pé! Como fico descomposta! Que vergonha!
Então, caiu uma chuva torrencial, molhando livros e cadernos. Incrédula, segurou o material à frente para ver o dano causado pela água, e tanto mais se assustou ao ver que sua própria camisa branca já estava encharcada.
E a meia sendo comida pelo sapato.
Imediatamente, viu-se numa vitrine, mulher jovem, à mercê da intempérie e do mal cosimento da meia, sem ter quem a protegesse. Os transeuntes, embora apressados, já davam conta de sua falta de defesa.
Lucíola parou. Agachando-se, numa posição imprópria para uma moça de família, simplesmente retirou a meia e jogou-a na calçada. Tirou também a outra, para que ficasse menos ridícula. Já agora, a camisa e os cadernos estavam todos molhados, como que revelando igualmente sua sexualidade precoce, já que, nos cadernos, sem que alguém suspeitasse, ela escrevia coisas também impróprias para uma moça solteira e normalista.
Então, soltou os cabelos fazendo ondular as madeixas em movimento, espargindo água para os lados – descobriu-se sensual. Eles, até então, estavam amarrados por uma fita.
Parada em frente à vitrine, achou-se muito bem, assim decomposta e selvagem. Por fim, afrouxou os braços com o material escolar, baixando-os e revelando os seios molhados e túrgidos, e seguiu sem as meias, sem preconceitos e sem a menor vontade de voltar a ser a normalista exemplar. Sobretudo, agora, era uma mulher – uma mulher embrulhada por uma chuva redentora.
Meu nome é Lucíola, nome de luz e nome de puta, sempre achei. Quero ser uma puta. Eu não posso ir à aula assim, nem voltar para casa.
Parou então num bar e sentou-se, a pretexto da chuva. Logo um jovem lhe ofereceu uma bebida, e ela aceitou de pronto, mostrando dentes perfeitos dentro de uma boca carnuda em um sorriso largo e malicioso. Ele era feio. Contou-lhe o incômodo da meia, ele se riu, e disse: “Isso não é um problema para você, você tem pernas lindas”. O flerte foi ficando cada vez mais audacioso e Lucíola decidiu acompanha-lo até a casa do rapaz, que era perto, já sem a gravatinha de normalista, que tinha mandado às favas e era a última ligação ao mundinho cor-de-rosa que todos enxergavam em torno dela.
Assim vestida e molhada, e com os cabelos soltos, parecia uma mundana qualquer, mas descobriu que gostava disso. Antes de seguir o homem, pediu uma cerveja, que ele pagou de bom grado. No caminho, o rapaz lhe perguntou se era virgem. Ela disse: “Faz diferença”?
Não fazia.
Só que era mais caro.