16 de junho de 2017

O horror em estado larval

“A infância é o molde dos monstros”, diz a epígrafe do livro Larva (Editora Oito e Meio, 2015), da autora Verena Cavalcante, já sugerindo o que está por vir, e me pego refletindo, após a porrada que são os oito breves e desconcertantes contos do livro, sobre os tipos de monstros que estão ali naquelas narrativas, gerando espanto, incômodo e comoção ao final de cada texto.

Não estamos falando de criaturas sobrenaturais, embora elas surjam na mente dos personagens, em alguns contos. Falamos principalmente dos assombros de um mundo real e ameaçador: o perigo da violência – física, psicológica, sexual – sempre rondando os personagens. Aterroriza, nos contos, o medo do desconhecido, que pode ser qualquer coisa já que se trata de um período da vida em que tudo escapa à compreensão. Cada vez que os narradores se deparam com uma faceta da vida que antes não conheciam – a insanidade, a velhice, a morte, a doença – eis aí um espaço de ignorância, especulação/suspense e, acima de tudo, de medo, que Verena amplia até o limite, a ponto de temermos pelo destino de seus personagens – pois logo vemos que estamos diante de uma autora que não é adepta a eufemismos e atenuantes.

Com as crianças e adolescentes narradores de Larva, voltamos a um período onde o horror ainda é novidade e bate mais forte do que a sua reincidência – porque o horror na infância vem sempre para ferir a ingenuidade, estraçalhar um sonho, tacar fogo no Jardim do Éden onde antes brincava-se sem preocupação.

É certo que existem, entre os meninos e meninas narradores, os que já são espelho da crueldade e da violência do mundo, mas estes não parecem entender bem o que fazem, agem no automático, por simulação do comportamentos de adultos ou pressão social. Quando o garoto do conto “Tijolo” esmaga a cabeça de um cachorrinho enquanto uma turma ao seu redor lhe obriga a fazer isso, tememos tanto pelo cachorrinho quanto pelo garoto. Afinal de contas, a infância é o molde dos monstros. Que tipo de seres humanos nascerão das sacanagens, humilhações e traumas desse período? Quais os monstros estão sendo gerados e vão acompanhar essas larvas até o fim de suas vidas?

 

 

Por falar em Larva, gosto de títulos ambíguos, e esse não foge ao caso. Pode ser tanto o apelido da protagonista do conto homônimo, a condição de larvas no casulo de todos os narradores e também o horror e a repugnância de certas imagens, como os vermes de um gato morto no conto “Aranha”.

Outro aspecto que vale ser comentado é a linguagem, o modo como os narradores tateiam não apenas o mundo, mas as palavras, e se comunicam meio aos trancos e barrancos, através de uma associação "livre" e caudalosa de fatos e imagens que, em vez de ser defeito ou falta de corte, talvez seja o segredo de sua autenticidade.

Todos nós que escrevemos sabemos a dificuldade que é assumir uma voz infantil e soar verdadeiro. Não raro trombamos, em contos e romances, com crianças (digo crianças, não adultos relembrando a infância) que mais parecem androides de filmes de ficção científica, sem o raciocínio e a linguagem de crianças, quando não crianças genéricas, sem personalidade, artificiais. Verena não só sabe criar narradores crianças muitíssimo bem como também consegue diferenciar essas vozes, conto a conto. Cada criança tem sua forma de narrar, seu universo lexical e semântico, uma variação linguística que transita entre vozes interioranas e urbanas, permitindo-se à oralidade e à quebra da norma culta, o que resulta em formas de expressão bastante vivas, que sugerem ainda uma variação etária entre os protagonistas: alguns mais próximos da primeira infância, outros da adolescência. Bom ver um livro ser editado com essa liberdade linguística. Qualquer pretensa correção gramatical poderia colocar o efeito dessas vozes – que soam potentes, verdadeiras, diversas – a  perder.

Em “Macaúba”, assim a narradora descreve sua estranheza em ver uma garotinha comungando na igreja, em uma cena em que o literal e o metafórico vão se entrelaçando, dando um nó na mente da criança:

Um dia na catequese a mulher falô que a hóstia que a gente ia comê era o corpo de Cristo e que o vinho era o sangue, ela falô que num podia mastigá, que tinha que deixá derretê na língua...Aí, quando eu fui na missa no outro domingo, eu vi a menina mastigano, e tinha sangue escorreno do quêxo dela, parecia que ela tava triturano os osso de Jesus, me deu um nojo muito grande, tive que engolí o gumito que veio. Dá até medo de fazê primeira comunhão, eu num quero gumitá o corpo de Cristo.

O conto "Rato", por sua vez, é embalado pelo ritmo da ira de um garoto mais velho e desbocado, num texto que fisga o interesse do leitor logo na abertura:

Eu odeio Deus. Ele é um filho da puta, um cuzão de bosta! Se Ele existisse mesmo, eu ia comer ele de porrada, foder com o caralho todo. Eu já sabia que Deus era um mané desd'o começo. Tanta gente malvada que a gente vê nas notícia, tanta gente roubando, matando, fazendo um monte de coisa ruim, e Ele vai e faz isso com o meu pai?

Terminada a leitura de Larva, a sensação é de ter lido um ótimo livro de contos, que surpreende por ser um livro de estreia, e desperta o nosso interesse para as próximas larvas, monstros e borboletas que sairão do casulo da ficção de Verena Cavalcante.