Naufrago em um copo de leite
Minha mãe morreu ontem à noite. Nem saiu da cadeira de balanço na varanda, nem procurou se proteger do frio da madrugada. Foi uma morte exata. As pernas suspensas foram parando de balançar, até pararem, enfim. Eu, arrasado, aterrizo do espaço estratosférico. Calmaria etérea. Aqui, embaixo das nuvens, junto ao corpo de minha mãe, busco sua alma pelo ar para forçá-la a voltar para dentro desse invólucro que logo será comido pelos bichos com apuro. Perco a força nas pernas, aterrado pela crueza da chuva de pedras, granizos que estrategicamente caem sobre mim. Não resisto, grito. Meus irmãos me socorrem. Quando vomito, me levam ao ar puro. Caem por terra, meus sonhos de mãe eterna. A mulher, que, em seu vestido de linho bege, me adulava, me acariciava e me alimentava, foi-se em suspiros sufocados. Mãe eterna. Nesses últimos dias, não notei nenhuma dor, nem nada me reclamou. As gemas dos olhos dela não tinham colesterol. Perversa gordura que ela passava no pão. Estranhamente não percebeu que isso lhe tocava a entranha. Era uma mulher forte, sem mimos próprios. Mamei até os quatro, deixava-me mudo, consolado. Violão sem cordas, agora estou. Devo cantar-lhe uma elegia, mas o fúnebre canto, em si bemol, não tem letra, só murmúrios, como a água agitando as folhas do riacho. Devo a ela tudo. E nada posso fazer, só faço chorar. Um choro triste é minha elegia. Não tenho vigor para segurar o caixão com os meus irmãos, as mãos tremem. Meus irmãos são fortes. Não quero deixá-la no isolamento do cemitério. Reluto a seguir esse cerimonial católico. Essas ladainhas falsas, dessas mulheres dramáticas. Quero minha mãe de novo. Quero o leite que no seu leito me deu. “Calem esta ladainha”, grito para as velhas asquerosas. Saem tangidas pela tangente. Meus irmãos não entendem minha cólera. Como poderiam? Estavam longe, ocultos em suas ocupações. Deixaram minha mãe solitária como objeto ordinário e sem valor. Minha mãe é uma jóia de valor inestimável. De cheiro raro, que, impregnado agora nas flores do lençol, me alivia a pena. Desatino do que está na sala. Prefiro esperar que minha mãe venha, me mostre que tudo aqui é teatro, de péssima direção. Prefiro que ela me sirva, sem o deboche das minhas parceiras, meu jantar. Que me cubra de beijos até o deitar. Passe o lençol até meu peito e agüente acordada ninando ao meu lado até que eu durma em deleite. Continuo cheirando o lençol, mas ela não chega e desassossega minha néscia esperança. Está anoitecendo, o cortejo já vai. Não posso deixá-lo ir. Há algo mais nisso tudo. Há algo mais. Não é só um corpo seguindo o seu fim. “O que fiz, minha mãe?”, grito segurando o caixão. Ainda não configurei minha existência. Não posso deixar que a levem à tumba. Sua alma de volta, perdida, sem ela, pode se extraviar, se perder entre os túmulos. Seguro o caixão e não a deixo levarem. Que chamem a polícia! Que cortem meus braços! Daqui, ela não sai. Só se eu for junto dentro. Uno. Ao seu seio. Deixem que eu fique com ela. Saberei o que fazer. Quero tê-la, mimá-la. Quero preservá-la. Haverá uma nova chance. Com ela sempre tive uma segunda chance. Quem sabe logo descobrem a cura para o mal que ela carrega. Quiçá, daqui a um pouquinho de dias, a cura para a morte seja descoberta. Salgarei minha mãe, conservarei congelada. Intangível. Aos quatro cantos, indagarei por soluções. Levarei aos maiores especialistas. Aos maiores otimistas que, como eu, conservam suas mães em formol. “Quiçá, meus irmãos, Quiçá”.