Pequenos terremotos
A casa começou a balançar e eu sentia por baixo dela como uma coisa chamando...
(Mare Tenebrarum, Braulio Tavares)
Ninguém poderia dar um pio nestas horas, acontecia por volta das cinco e 15 – mas já houve insinuações entre vários horários. Eu, Pedro e Irene – irmãos – Lucília e Juvino – pais – e um gato dentro desta casa onde porventura aconteciam pequenos terremotos. A casa estala, ninguém duvida.
Sentávamos, uma mesa interposta entre a conversa, Irene grávida de dois meses esmagada sob o olhar de papai, nossos movimentos autômatos, passar a torrada, derramar o café, afastar o gato, enquanto os ouvidos trabalhavam inconscientemente sentindo o frêmito esperado de uma parede, quem sabe começando nos fundos da casa o germe do abalo, ainda que de normal o vizinho na sua varanda – de onde o observávamos, surdo ao perigo e alienado, o vizinho com o olhar na fronteira do muro: o tremor era restrito ao número 157: nossa casa.
Quem diria que no começo papai achou algo estranho, os quadros tremiam no verão durante alguns segundos, um bom observador notaria uma rachadura ali na torneira da pia, uma fenda desenhando um traçado atrás do cano, dobrando o batente e indo se alojar no quarto, atrás do guarda-roupa, atordoada cicatriz. E entre risos nervosos – os primeiros sintomas internados em nós – achávamos que a casa parecia estar invadida. Literalmente. Talvez um comício de fantasmas.
No início, o absurdo se alojava nas explicações: o atraso no pagamento da água, a poluição sonora do bairro, a notícia da gravidez independente de Irene, coisas em si que acumuladas fariam ressonância no universo e voltariam em eco incomum na forma de pequenos tremores no perímetro de nossa casa.
Depois houve o cerceamento de nossa comunicação. Seria melhor não apenas se ater a poucos movimentos para não agravar a situação. Nosso pai rendeu sacrifício oferecendo a mudez – e que todos ali seguissem o preceito. Pedro inconformado e sentindo-se um desperdício, como se agora o mundo mostrasse em fenômenos desta laia suas leis nada causais. Muitas vezes recebeu um dedo autoritário na cara, e em resposta ia murchar de vez no canto do quarto, enquanto distraidamente jantávamos o silêncio. O costume terrível de olharmos ao mesmo tempo para o ponteiro do relógio, uma previsão autodidata de marcar o início da proteção das louças, peças valiosas, até mesmo segurar o gato. Ao primeiro sinal de um novo terremoto (que eu batizei de bolso) corremos e multiplicamos as nossas mãos, aqui um apoio para o vaso, ali a prateleira dos livros, mamãe segurando histérica o felino, as unhas do gato tensas de terror no seu avental, a cozinha epiléptica, nas despensas trincados de talheres e guinchos de ratos, a cristaleira dançando um fox-trote, eram 5 e 15 da tarde e não há tempo nem para respirar. Segundos depois, o silêncio e um ou outro prato no chão, felizmente inox.
Nunca foi costume o gasto com pequenos luxos. Mas face aos terremotos cronometrados, dias depois uns homens reforçaram grades, apoios de tv, vigas, fundações. Eu observava tudo meio atarantado, acariciando o gato no sofá, num gesto casual. Mais pequenos e neurastênicos, os olhos do gato me devolviam uma muda queixa, como esses loucos que, por força de não articular uma óbvia verdade, ficam enigmáticos e messiânicos.
A rotina, já pequena por natureza, pouco foi alterada. Nada de banhos à hora marcada, nem programas de auditório na tv ou fazer sala às visitas, nem licor e castelos de cartas. Alguns dias estranhamente os abalos se ausentaram. Ninguém arriscou sequer um palpite, já se planejava até uma partida de baralho entre vizinhos, Pedro voltava a ouvir som alto, Irene não tinha mais pesadelos sobre aborto.
Ledo engano. Semanas depois vibraram os bigodes do gato, como um radar.
Pouco antes do amanhecer nossa mãe estava ao liquidificador, passando frutas, o barulho controlado do eletrodoméstico, enquanto Pedro calçava as chinelas, Irene e papai pisavam os últimos degraus do sono, então se juntou à vibração outra, mesmo depois o troço continuou, a mãe duvidava se tinha desligado mesmo o aparelho, conferiu a tomada, e de susto viu a cascata de panelas talheres gavetas saírem dos eixos, indeterminadas, e como uma maré de aproximações o teto e o repique do lustre, difícil não acordar vendo a casa toda troar como um gonzo ou a passagem desgovernada do metrô ou cem soldados sincronizados ou o apocalipse precoce, bem ao longe o miado longínquo do gato entre quedas de armários, Pedro chorando, o pai trêmulo descendo as escadas e na testa um galo, pedaços de reboco e nenhuma solução, o gargarejo do tremor parece atingir o ápice e Irene debaixo da cama que sapateia sob um rio de estilhaços e contas do rosário e é assim como um fluxo e mais alguns segundos até que subitamente pára, (e nos juntamos a um canto da sala sob/sobre uma nuvem de poeira e ecos) mas ainda tremem por dentro todos e isso dura uma eternidade e só o gato, aterrorizado, salta a janela e ganha o telhado e vê o mundo e as andorinhas e outros telhados e um mundo simétrico e em pé como se não houvesse nada e o apocalipse fosse a domicílio.
Por períodos intermitentes, aconteciam estremecimentos mínimos em pontos isolados da casa, como se a mesma sofresse cócegas cruéis. Às vezes, só no aquário, trincando o vidro. Ou na súbita síncope do sofá. Não arriscávamos a sair de casa. A vizinhança fingia ignorar ou mesmo não sabia, o céu destilava azul e química inorgânica, o horóscopo falhava acertadamente. Papai e mamãe brigavam, sísmicos. Brigas e abalos da terra equiparados espiritualmente. O gato enlouquecera, dois pontos acima da escala de Richter. Vagava de um ponto a outro da casa, o rabo pênsil em duas cores. Procurava uma saída, já que em si mesmo abandonara toda e qualquer clarividência felina.
Por via das dúvidas, o gato foi expulso. Meses depois, quando ecoavam relâmpagos dos pequenos terremotos apenas na memória, éramos pouco menos que uma família: o casamento em ruínas e os filhos traumatizados.
A casa ainda intacta.
*Conto do livro Fábulas portáteis, publicado pela Editora Patuá