5 de abril de 2017

A poesia de Micheliny Verunschk

Micheliny Verunschk é autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003), A Cartografia da Noite (Lumme Editor, 2010) e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). Foi finalista, em 2004, ao prêmio Portugal Telecom com o livro Geografia Íntima do Deserto. Publica em 2014 seu primeiro romance Nossa Teresa -vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, com patrocínio do Programa Petrobras Cultural), vencedor do Prêmio São Paulo de 2015. É doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

***

a mulher de Lot
se voltou para trás
a tempo de ver Orfeu
voltado para trás
a tempo de ver Adão e Eva
voltados para trás.
a mulher de Lot
o mesmo sal a mesma solidão.
***

 

há quinze anos
quando você me amava
e quando eu amava você
não pensávamos no fim do mundo
e nem se o futuro seria uma teoria
plausível de comprovação
quando acordamos aquele dia
sobre os escombros das torres destruídas
como o primeiro homem e a primeira mulher
expulsos de um paraíso já em cinzas
nos demos conta da morte e da separação
e de como nossas mãos jamais tornariam a se tocar outra vez.

***

 

a palavra amor
comporta todo esse desastre
todo esse choro e desencontro
todas as guerras pelo nome
Helena
ou Fatma
ou Maria
ou César
ou Miguel
etc etc ao infinito?
a palavra amor
comporta todas as tecnologias
para um abraço
o avião o trem
a velha carroça encostada nos fundos da casa
e essas cartas
essas músicas
essas joias e penduricalhos?
a palavra amor
comporta todo os filmes
do cinema americano
as balas zunindo de ciúmes e desengano?
a palavra amor comporta
todos os verbos
e esses versos mal escritos
que envergonhariam os primeiros
habitantes das cavernas?
a palavra amor comporta
tanto bicho morto
pilhas de livros
tantas fogueiras
e luas ao redor do sol
e ainda as vozes que pairam sobre as cabeças
eu te amo te amo te amo?
a palavra amor
[esse móbile girante
objeto perfuro-cortante]
comporta a minha vida
e a tua?
*

 

Trajeto

Maçã.
Velhos que se falam
em
uma língua incompreensível.
Três quilômetros de paredes descascadas:
Outra cidade.

Palavras.
A casa rosa
com platibanda branca,
O o rio prenhe de embalagens coloridas,
o meu pai
me acenando noutra plataforma.

Poema.
A lembrança do poema,
o reconhecimento do poema,
a sua perda.

Velocidade em espiral:
perfume barato,
a casa rosa,
crianças brincando num quintal,
camiseta vermelha,
a minha vida num quadrado mágico.

Velocidade em espiral:
a língua dissoluta,
o filho morto da minha avó
na próxima estação,
a minha avó,
arames farpados nos muros,
como trepadeiras,
(o burburinho do trem).

Poema.
O cheiro do poema.
O poema sujo de carne.
O vidro embaçado
do poema.
os nervos expostos do poema..
Poema.
Uma caixa de madeira ordinária
forrada de flores
e tecido de algodão ordinário.
A uma fotografia de alguém
que parece ser eu.
Tijolos vermelhos e brancos.

Velocidade descendente:
O amigo sem o nó na garganta,
o amigo luminoso horas antes,
o amigo dançando na memória no meu sonho.

Velocidade descendente:
A sua pele sobre a minha pele,
os seus cabelos alinhavados aos meus,
a cicatriz me atravessando.

O poema.
A voz inequívoca do poema.
O gosto de sêmen do poema.
O ritmo
a perda do poema.

O meu avô na outra margem.
O meu pai na outra margem.
Eu.
A cidade cinza,
contra o verde quase impossível
a mulher grávida
andando por sobre o lixão,
A a lua, como o sorriso doe um gato.

Aceleração contínua.
Velocidade em espiral.
Talvez eu na próxima parada,
viVisão do último trem subindo ao céu
num livro muito velho.

Aceleração.

Desaceleração.

Repouso.

Tudo parando.

Cuidado com o vão entre o trem e a plataforma.