Grupo de Apoio Real à Pessoa Assaltada
A mulher atendeu o telefone com voz de fim de expediente em repartição, Alô. Oi?, respondeu uma voz de mulher, do outro lado da linha. Silêncio. Alô? É que me deram esse número hoje e eu não sei... Esse telefone aí é do GARAPA? Sim, é aqui mesmo, disse a simpática que tinha atendido o telefone. A outra suspirou, nervosa. Vocês podem me ajudar? A senhora foi assaltada? Se tiver sido, podemos. Os encontros são todas as sextas, das 20h às 22h. Nosso lema é, Se você está aqui nesse horário em plena sexta-feira e não na rua ou num bar, com certeza é um assalto a menos na sua vida: a gente confia no segurança que colocamos na porta. A outra reclamou, Mas logo numa sexta? A mulher soltou um grunhido irônico e meteu a unha, Quem quer ser ajudado não tem esse negócio de hora, não. O endereço tem no site da instituição, com mapinha do Google Maps ensinando a chegar e tudo. Se quiser vir, chegue cedo, os encontros são concorridíssimos e mesmo os assaltos sendo infinitos, as vagas são limitadas. E desligou o telefone.
Olá, meu nome é Marilena Lima, e eu fui assaltada antes de ontem. Roubaram o meu carro e a minha bolsa com todos os documentos. O meu carro tudo bem, porque tinha seguro, mas que trabalheira ir na delegacia fazer BO, tirar toooooodos os documentos de novo... E o tamanho da fila na Casa do Cidadão? Pensei que nunca que iam chamar minha senha. Bem que minha filha já tinha me dito pra andar com uma bolsa verdadeira e a bolsa do ladrão. Mas eu disse pra ela, Do que é que teria adiantado, se as duas estariam no carro, que ele também fez a gentileza de levar?
A mediadora aproveitou a deixa e levantou a palma da mão, num sinal claro para que ela parasse de falar. Com um gesto de cabeça, sugeriu que a pessoa ao lado dela desse seu testemunho. Marilena ficou intrigada. Seria a mesma mulher do telefone, ou todos ali pareciam não estar muito preocupados em ganhar concurso de simpatia?
Boa noite. Meu nome é Roberto Jefferson e eu fui assaltado semana passada. Ainda estou abalado, porque meu cachorro estava comigo, e foi justamente o que eles levaram. Era o meu companheiro de todas as horas, há mais de cinco anos... E agora – e nesse momento sua voz ficou trêmula e em seguida amortecida, como se o remedinho pré-cirúrgico tivesse acabado de começar a circular pela corrente sanguínea – agora, eu já nem sei mais o que fazer. Espalhei cartazes por todas as ruas do bairro, dizendo que dou recompensa. Porque virou moda esse negócio de roubar cachorro e pedir resgaste, né? Então já aviso logo que negocio, que ofereço. O senhor tem conseguido dormir, o sono está em dia, como ficou seu lado psicológico depois do ocorrido, senhor Jefferson? Era a mediadora, de novo. Olha, dormir eu tenho dormido. Às vezes demoro mais porque trabalho até tarde e tomo muito café – burburinho. As pessoas se entreolhavam. Algumas se diziam em frases cortadas, Também, assim não tem como dormir bem mesmo, mas não chegavam a completar o pensamento. A acústica do local transformava qualquer som num espetáculo de orquestra sinfônica, e como estavam em círculo, tinham medo da leitura labial dos outros. Roberto Jefferson esperou o zunzunzum passar e fez como se fosse continuar, mas se calou e deixou o corpo escorregar um pouco na cadeira.
Mais alguém quer dar o testemunho?, indagou a mediadora. Ai, eu quero. Eu preciso, disse uma voz chorosa numa parte do círculo quase perto da porta. A mulher era pequena e sua feição, aliada à cara de sofrimento, a faziam parecer acuada. Todos se voltaram para ela, que continuou lá, parada, com o dedo indicador levantado com timidez. Ela, contudo, permanecia em silêncio. Vamos lá, minha filha? Pode falar. Nada. A senhora está precisando de alguma coisa, quer uma aguinha com açúcar? E se virando, gritou, Ô Cavalcante, pega uma garapinha aqui pra essa senhora, por favor. Se ela não se acalmar não temos como ouvir seu testemunho, muito importante para todos nós que fazemos parte do Grupo de Apoio Real à Pessoal Assaltada. Como se já tivesse uma garrafa pronta só esperando o chamado, em segundos, lá vinha o Cavalcante com um copo onde geralmente se serve cerveja, mas nesse a mistura era de água e açúcar. A mulher bebeu em dois goles. Acho que agora já posso começar, anunciou. Obrigada, disse a mediadora.
Meu nome é Ana Furtado – risos involuntários. Pessoas se sentindo envergonhadas olhando para o chão, para o teto, para a bolsa, até que tudo volta a uma aparente normalidade – e ontem, quando eu saí do shopping e fui para o local onde tinha deixado meu carro, sofri um assalto e uma tentativa de estupro. De novo, a palma da mão da mediadora ergueu-se, Antes da senhora continuar, quero dizer duas coisas: a primeira é que desse segundo problema nós não tratamos aqui. A mulher disse, numa vozinha baixa, Eu sei, eu sei, mas é que fez parte do assalto e eu queria... Espere, deixe eu concluir: esse assalto aconteceu no estacionamento do shopping? Não, respondeu Ana Furtado. Eu deixei o carro estacionado debaixo de uma árvore, a uns dois quarteirões do shopping. Com os preços cada vez mais abusivos desses estacionamentos não dá, não é? A senhora me entende. Então, deixei meu carro lá e fui ao shopping olhar as vitrines e fazer umas comprinhas. Na volta, perdi tudo. Perdi não, o homem que se achou no direito de ser o novo dono que levou. E ainda queria levar outra coisa, não é? Mas eu não deixei. Eu gritei, eu me esperneei, até que vieram umas pessoas correndo e o homem correu também, levando minhas sacolas. De lá pra cá, eu não consigo parar de pensar no que aquele homem teria feito comigo se eu tivesse ficado calada. Ele com certeza teria acabado comigo. E eu, eu... – novo choro – só pensei no meu ex. Que se ele tivesse ali comigo.... Ai, foi horrível. Cadê a segurança dessa cidade, meu Deus? Pra onde estão indo os meus impostos? E esse governo que não faz nada!...
Mão da mediadora. A mulher se calou.
Todas as semanas, trinta pessoas se reuniam no segundo andar de um prédio sem elevador para contar casos de assaltos. Nem todos eram verdadeiros, e ela sabia disso. As pessoas só queriam um lugar para reclamar de suas vidas, o suposto assalto se tornava muitas das vezes apenas um pretexto. Por isso, antes de recolher a caixinha onde cada participante deixava vinte reais na entrada – dinheiro que ela usava para pagar o segurança e o aluguel da sala, o que sobrasse ela gastava como queria, não era da conta de ninguém e não sou eu que vou contar – e dar a sessão de chorume por encerrada, ela sempre perguntava: em que lugar está a sua responsabilidade no caos do qual você se queixa? Quando alguém fazia menção de responder, ela subia a mão e dizia, É apenas para você pensar. Boa noite.
E cada qual seguia seu destino de fim de semana, quando recarregavam as baterias para ter do que reclamar na sexta-feira seguinte.