Sonetos de amor em branco e preto, de Manoel Herzog
Em Sonetos de amor em branco e preto (Patuá, 2016), o escritor Manoel Herzog libera a verve clássica – o soneto é uma forma clássica de 14 versos decassílabos (mormente) – sem perder a exuberância fescenina. Ao longo das 150 páginas do livro, o leitor se delicia com grupos de poemas que destilam tesão e fodeção, numa desbocada e nua verborragia de baixo calão.
O livro, premiado pelo ProAc paulista, tem prefácio do próprio autor (Uma breve exposição de motivos), em que ele explica as origens do soneto e como se virou para fazer o livro. Vou deixar de lado as considerações do autor e vou direto à obra, mas com o aviso de que o prefácio é bastante instrutivo. Leiam, meus queridos!
No livro I – Sonetos de amor em branco, temos o amor em si e a insuficiência do soneto para explicitá-lo. Destaco, aqui, um de que gostei bastante, mesmo que não seja o melhor para a ilustração. Note-se, nele, a inversão da disposição dos quartetos e tercetos, além da sobriedade do discurso:
II
Canoro canário
Que cantas do claustro
Da tua gaiola,
Meu obituário
Que encerra meu fausto,
Meus dias de glória,
Cantaria doce
Pudesse a memória,
Maestrina que fosse,
Fazer-me pôr fora
Amores, chamegos,
E uma luz fosfórea.
Assum-preto, cego,
É o que sou agora.
Do mesmo Livro I, destaca-se, ainda, o belo Soneto para Jordana, em que o rio é uma metáfora para o amor: Atravessar-te foi iniciação./ Por mais que eu navegasse nos baixios,/ Por mais que eu me esbaldasse em tantos cios,/ Fui batizado é no teu rio: Jordão (segundo quarteto).
Já no Livro II, Sonetos em preto, começa a desarticulação vernácula para a chegada na baixaria que é todo amor, afinal de contas. São temas desde a internet até a política: o autor não faz diferença entre um e outro, desde que a serviço da “phoda”. A perda, a separação, é tema recorrente:
Rancoroso, ma non troppo
Do nosso amor restou belo monturo:
Garrafa pet, pneu velho, entulho,
Os urubus, pombos do amor, num arrulho
Dançam sobre esta cama, e o barro escuro
Quer viraram os sonetos e os “eu juro”.
Nosso fubá está cheio de gorgulho,
Pra merda alguma serve o teu orgulho,
Me vejo só na cama, e de pau duro.
Ressentimento, mal-estar, ciúme,
Engulho, lembranças de grandes fodas,
Punheta fria, gozo frio, negrume,
E a depressão que aos versos incomoda.
Meses de fronha suada e barba hirsuta –
Volta pra mim, sua filha duma puta!
O Livro III – Sonetos sociopolíticos, cujo tema dispensa comentários, abre-se com o triste Ímpio réquiem:
Para cada cento e onze picas ceifadas
Fura-se o bucho de um só Ubiratan.
Qual ditadura que foi sepultada,
Quem diz que raiou a nova manhã?
Irmãos dispersos, quebrada a romã
Polpa ofendida, sementes mascadas
Crimes, desonras, nação violentada
O pai na forca e o estupro da irmã,
Hipótese alguma faz troca justa
Foi dito, o crime jamais se compensa,
Não apras a morte de um monstro feito Ustra,
Nem fria vingança nos faz recompensa
Pra alma. Ver morto, fedendo, um Malhães
Em maio, às praças, não consola as mães.
Há, no entanto, neste terceiro livro, espaço para o bom humor e a tiração de sarro, em sonetos muito bem escritos como Comunista de Paris e o Soneto promotorial: neste, Herzog brinca com a condução coercitiva de Lula e as anotações de seu depoimento, em que se escreveu: “Teria envergonhado Marx e Hegel” (sic): Pois que foi este o argumento/ de três promotô birrento/ Tentando encurralar Lula.
O Livro IV, Sonetos de amizade e outros amores, traz poemas inspirados em amigos e brincadeiras, como a promovida logo no primeiro soneto, pelo aniversário do também escritor Emmanuel Santiago, a quem dedica o Spleen dos trinta anos, arrematado com o seguinte venenoso verso: Pra depois ver que só o cume interessa.
Nesse livro, estão três sonetos que nasceram da criação de seu livro anterior, Jabuti em 2014, A comédia de Alissia Bloom, que naquele vive o inferno da busca da satisfação sexual. Vale destacar o #Libelo contra a discriminação#:
Embora vez por outra surja um fidiputa
Aqui no meu perfil pra vir me encher o saco,
A maior parte aqui é gente astuta,
Chegada na suruba e no balacobaco.
Amigo de Alissia jamais pode ser fraco,
Quem curte o meu perfil é só gente batuta.
Sem discriminação, chegou ni mim catraco,
Seja azul, amarelo, preto, branco ou fruta,
Porque a casa de Alissia tem muitas moradas,
Ninguém fica de fora, o bagulho é plurar.
Em comunhão de membros, há muitas gozadas,
Um festival de peito cu boceta e pau.
Quer foder pode entrar, chega ni mim que eu xuxo,
Mas chega na moral, respeita meus miguxo.
O livro VI é, para mim, o melhor deles. Os funerais da Mamãe (Réquiem de um projeto político) é uma sessão de 37 sonetos, cada um ou mais de um dando voz a uma personagem, sendo que o enredo retrata o velório de uma drag queen, pai de família honrado, entanto, chamado João Genofre, e os escândalos que ali sucedem por amor, ódio, inveja, interesses putescos os mais diversos, sonetos que honram a memória de Gregório de Matos, que orgulho(!) para este “Boca do Inferno”.
A sucessão de poemas leva a uma hilaridade incontornável. É um bas fond familiar e de autoridades, como o doutor Aristeu, viado enrustido, cliente de Mamãe.
XXI
por onde o Estado reage à insubordinação da velha marafona.
De ouvir isso Mathias não gostou foi nada,
Nem Aristeu, o juiz. Dissolvida a parelha
Com a morte de João, sobra esta puta velha,
Tia Lucreta vem fazer revolta armada.
Vadia comunista, essa praga vermelha
Com a força do Estado há de ser sufocada.
Ligaram para o Interventor, e uma brigada
De choque foi chamada: “Lucreta, ajoelha!”
Gritava o Coronel, de cassetete em punho.
“Ou tu cala essa boca ou saporra te entuba!”
Mas Gaga se alistou, quis dar seu testemunho,
E os filhos naturais, e os demais travestis.
Aristeu deu piti, gritava: “Vão para Cuba!
Bando de comunistas, súcia de zumbis”.
Nem teria graça desvelar, aqui, todo o enredo. Fica esse aperitivo para a punheta ou siririca de quem queira. Viva a carnavalização sociopolítica e amorosa de Manuel Herzog! Viva o filhote de cruz-credo do “Boca do Inferno”!