15 de fevereiro de 2017

A poesia de Bruno Molinero

Bruno Molinero, autor do livro de poemas Alarido, estudou na Escola de Comunicações e Artes da USP, na Escuela Internacional de Cine y Televisión (Cuba) e na Universitat de les Illes Balears (Espanha). Jornalista, escreve para a Folha de S.Paulo desde 2010. Foi vencedor do prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog, finalista do prêmio Nascente, da USP, e indicado ao Prêmio Folha. Em 2012, representou o Brasil no World Event Young Artist, na Inglaterra. Alarido integra a Coleção Patuscada 2, projeto premiado com o ProAC - Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo.

rachel, 19, selfie

alô, mãe?
estou bem, fique tranquila
saí antes de ele chegar

*

que barulho é esse?
tiro?

*

reféns
alguns amigos meus
revólver apontado para a cabeça

*

não sei
parece que a polícia está negociando

ele não quer soltar os alunos

*

um prazer falar com você ao vivo, datena
queria aproveitar e mandar um beijo para a minha mãe
ela não perde um programa

*

um horror, né?
ainda mais em uma universidade…
onde este país vai parar?

*

o senhor pode tirar uma foto minha?

*

e agora?
é tiro?

*

espero que o wi-fi ainda esteja funcionando
apesar de toda a confusão

queria postar no meu perfil

 

-

 

marcela, 43, casada

matei, sim senhor
porque quis
não, até que era bonzinho
na gaveta da cozinha. uma daquelas grandes, sabe?
isso, ele estava no sofá
de costas
não, não me viu
dei dois passos e a lâmina escorregou para a cabeça dele
não tirei porque mancharia ainda mais o tapete
ora, se sabe, por que pergunta?
desculpe. sim, o corpo ficou lá
depois saí
mansão. era muito rico
não. deixou tudo para as meninas
eu sabia, sim senhor
porque quis, já disse
cansei de subir em pau de sebo. deslizar fácil não tem graça
sim. mas vou ficar muito tempo?
é que deixei a panela no fogo

 

-

 

lúcia, 51, canhota

a morte do meu pai
é minha lembrança mais bonita

estávamos nós quatro na cozinha
eu
mamãe
vó marta
e meu irmão
quando veio a bomba

- papai morreu

vestida de rosa e bolinhas amarelas até o tornozelo
vovó se levantou
subiu no banquinho em frente à pia
esticou-se para alcançar o pó de café guardado no armário
e disse lentamente
enquanto colocava a água para esquentar

- calma, lucinha. nós já vamos vê-lo

entramos no landau azul
chumbo
e logo imaginei meu pai da mesma cor do carro
algodãozinho no nariz
terno preto
gravata fina

mas quando chegamos ao porão
em que meu velho tinha dormido para sempre
quase caí para trás

meu pai estava enforcado
mas não era um morto qualquer
caído
frouxo
flácido

ele morreu enforcado
em um quarto colorido
cheio de brinquedos
vestido de palhaço
e com milhões de bexigas amarradas no pé esquerdo
tantas
mas tantas
um exército de bolinhas cintilantes
que puxava o corpanzil de 120 quilos pelo tornozelo
em direção ao céu
e só não o levava para a lua
porque a corda amarrada ao pescoço
insistia em fazê-lo flutuar de ponta cabeça

meu pai morreu enforcado
espelhado
ao contrário
invertido

ele sempre me surpreendia
aquele bandido
até na morte tinha que fazer palhaçada

deitei no carpete cinza
olhei os cabelos feito morcegos ao meio-dia
e adormeci com o cheiro forte de café que inundava o ar