A alma deslocada
então eu acordei na minha cama de solteiro sentindo-me pesada do lado esquerdo, sendo que o lado direito eu nem sentia.
minha alma havia tentado sair do meu corpo, mas sua ponta direita ficou retida no meu coração, de modo que metade do meu corpo, a metade direita, perdeu a luz.
que luz?
coisa de doido, melhor mesmo acender a luz, já que não poderia ascender à Luz.
levantei-me preparei o café tomei o café só café preto fazendo tudo com a canhota; a mão direita imprestável, a mão esquerda prestando bem.
saí ao jardim e as maritacas naquela gritaria que eu costumava adorar, mas que na ocasião me intimidou. fiquei ali mirando e vendo.
até que uma maritaca deitou no meu ombro morto. eu estava quase morta, pensava, deitada na rede e balançando. o impulso para o vaivém só com o pé esquerdo, é claro.
O parceiro daquela maritaca veio também, conversaram lá na língua deles e começaram a trazer uns ramos. iam fazer um ninho em cima de mim.
Não sou fértil, nunca precisei usar anticoncepcionais. e agora, madrinha de maritacas?
Isso durou até à hora do almoço; então, com a minha incrível boa canhota desarrumei aquele começo de ninho que ficava do lado direito. sensação de perder tudo. as maritacas emudeciam e naquilo eu via um verde evanescente. eu caí da rede e me deixei ficar no piso frio da varanda. cheguei a tirar uma soneca.
quando fui almoçar, percebi que a alma tinha voltado para o seu lugar. cabia direitinho dentro de mim. o que será que ela havia expulsado de si para tornar-se tão mais leve?
comi arroz com pequi e peguei uma trilha de caminhada. onde havia algumas palmeiras imperiais, corei, pois eu era muito pequena, menor que os passarinhos que bicavam seus coquinhos, acho. sei lá!