O imaginário de André Ricardo Aguiar
Um livro de contos pode ser um exercício de imaginação, e esse é o caso de Fábulas Portáteis (Editora Patuá, 2016), de André Ricardo Aguiar. Uma coletânea de 38 textos em que predomina o conto fantástico em diversas de suas temáticas. Das falsas patologias às histórias de fantasma. Do jogo de espelhos e labirintos aos acontecimentos bizarros e repentinos em vidas aparentemente banais.
Percebe-se o diálogo – nas entrelinhas e às vezes direto –, com Borges, Cortázar, Kafka, Murilo Rubião, José J Veiga, entre outros, em um trânsito constante por situações comuns do fantástico a partir das quais André constrói seus contos e imprime sua identidade.
Gosto do portátil do título porque traduz muito bem um modus operandi das narrativas de levar coisas de um lugar para o outro com facilidade: o lugar comum ao lugar estranho, o sentimento de previsibilidade ao susto, e, em alguns casos, o prosaico ao poético (ver, nesse caso, Composição Infantil).
Já o termo fábulas, com todo o sentido abrangente que vem adquirindo, sem uma oposição na frase que denote ironia, acaba me remetendo às histórias com animais de características humanas vencendo algum conflito em que o resultado será um ensinamento moral. A presença de um animal na capa reforça a sensação de que esse é o tipo de fábula que será explorada, provavelmente subvertida no livro. Felizmente, trata-se de uma boa arapuca pela qual caímos num universo fantástico mais amplo, de estranhamento e liberdade, onde não se permite o fechamento de uma parábola sequer.
Uma imagem recorrente no livro é a da casa sob algum tipo de ameaça. Sejam pequenos e inexplicáveis terremotos, intrusos sempre prontos para tirar o sono dos proprietários (Pescaria, Casa de Boneca), a casa como o próprio corpo dos protagonistas sob ameaças insólitas (O Apartamento, Um Sopro de Vida, K), além de outras casas, aqui e ali, como a moradia onde a família decide não caber mais a presença de um ancião (O Problema do Avô), o casarão onde um homem se perde em um conto de inspiração mitológica (Labirinto), a casa que é, também ela, um personagem (Casa na Árvore), e uma casa diferente de todas as outras, a da memória, onde um narrador em primeira pessoa enxerga sua infância de maneira nostálgica e poética (Composição Infantil).
As senhoras, ao fim da tarde, varriam folhas e formigueiros. Os moços varriam conversas e causos. O rio varria água. A tarde varria o sol. Só eu vivia nos invernos da casa, contando quantas formigas, quantas gotas d'água fugiam para o indefinido. Minhas ocupações de ócio levavam horas. Pensava em sofás que sofriam de asma, almas do outro mundo dentro da cisterna, punhos de redes que esmurravam paredes.
A imagem da casa aparece ainda no glossário disperso no livro, com vocábulos que lembram uma rotina doméstica: Sofá, Despertador, Cama e Chuveiro.
Buscando o espanto, mas sem abrir mão do lúdico e do humor, Fábulas Portáteis tem seus pontos altos, ao meu ver, nos contos Casa de Boneca, Uma História da Escuridão, Um Sopro de Vida, Autoajuda, Carmela, K, Labirinto, O Problema do Avô – que chegam às inversões ou achados que propõem de forma fluida, sem alteração brusca ou incoerente dentro de suas próprias lógicas; surpreendem sem forçar o baque final. Embora essas sejam minhas narrativas preferidas, os textos, no geral, não ficam muito abaixo do tom – têm força e ajudam a dar unidade à coletânea. Destoam, talvez, As Confissões, breve distopia que me parece apenas um resumo para uma distopia; concentrada, corrida, desenvolvida superficialmente, e também o glossário disperso no livro, por não ir muito além na sua proposta de transcender o sentido literal dos objetos escolhidos – e aqui me refiro às palavras que abrem as seções do livro, não ao conto Doenças de Leitores, com vocábulos que chegam ao humor e à estranheza na precisão de uma flechada, com inventividade e sem rodeios.
Entre os livros de narrativas breves que tenho acompanhado na nova literatura brasileira – com narrativas situadas, quase sempre, em alguma vertente do realismo – Fábulas Portáteis é uma coletânea sem paralelo, que mergulha no fantástico por 38 maneiras com a façanha de não se repetir até o fim, de buscar novos estranhamentos a cada novo conto. Para quem gosta de literatura fantástica, como eu, uma coletânea imperdível.