3 de fevereiro de 2017

O Herdeiro do Porsche e o Flanelinha

O Brasil nasceu dentro de um mar de violência e pilantragem. Sempre foi assim. Nascemos do roubo e vivemos no roubo. Macunaíma e sua jornada do herói alucinada revela mais de nós do que gostaríamos de aceitar. Somos heróis perversos. Amantes do jeitinho, cheios de ódio e picaretagem disfarçados de simpatia e sorrisos. Apesar disso, amo o Brasil. Dentro desse círculo de putarias existem pessoas incríveis. E são para elas que direciono o meu texto.

Nos últimos dias, dois fatos me fizeram ter vontade de escrever sobre poder.

Pois são fatos que resumem bem as relações de poder no Brasil.

Começo este texto falando de carros. Sim, carros.

Para muitas pessoas ter um carro não significa só ter um transporte. Ter um carro pode significar pregar no asfalto quente um manifesto, exibir para a sociedade uma mensagem brilhante: eu sou isso, você é isso, não vamos nos misturar. Olha, eu não sei porra nenhuma de carros, nem dirijo, mas quero falar do símbolo fálico chamado carro.

Vamos começar com a literatura.

No romance “Cosmópolis”, do Don DeLillo, o protagonista Eric Packer, um jovem bilionário, passa praticamente o dia inteiro dentro de uma limusine. Na limusine tem bar, banheiro, monitores conectados à internet e câmaras de vídeo. Neste dia, ele perde a sua fortuna por causa de uma aposta no yen. O presidente da República está na cidade, os mercados estão pilhados, um protesto antiglobalização está rolando na Times Square e o trânsito está caótico. Acompanhado do motorista e de seguranças, Packer demora o dia todo para percorrer dez quarteirões e especula, calcula, trabalha, tem encontros dentro do veículo com inúmeras pessoas, trepa e quebra. O sistema financeiro é puxado a uma crise. Ruínas. A limusine vaga como um fantasma pela cidade.
A narrativa fria de DeLillo simula o avanço do capitalismo, a dureza da linguagem contemporânea e como estamos prestes a fuder com a porra toda. Packer é um homem do mercado, mergulhado da cabeça aos pés no cifrão. Aqui, DeLillo abraça o artificial para dizer como o capitalismo engoliu tudo. Eric Packer e sua limusine são a metáfora de um sistema que não está em decadência, pelo contrário: está em crescimento constante e acelerado. Vivinho como um recém-nascido cheio de som e fúria.
A crise é uma parte essencial e saudável do capitalismo.
Já no conto “Passeio Noturno”, do Rubem Fonseca, o carro não aparece como o lar de um bilionário. Neste conto, ele é o anti-estresse de um empresário cansado do seu dia-a-dia. O cara atropela pessoas nas madrugadas da cidade para relaxar e injetar um pouco de adrenalina no seu sangue morto.
“[...] Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.”
Fonseca descreve em detalhes o atropelamento da mulher. No final, vemos o assassino, agora relaxado, retornando para a sua casa.
“A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.”

Este tipo de narrador, um homem com grana que maltrata aqueles que estão abaixo do seu poderio já foi usado muitas vezes na literatura. “O Psicopata Americano”, de Bret Easton Ellis e o meu conto “O Bom Selvagem” são outros exemplos.
Mas falo aqui de “Passeio Noturno” e “Cosmópolis” por causa dos carros. Os veículos tem uma força essencial nessas obras. Nelas, o rico mostra o seu poder através do veículo. Em “Cosmópolis”, DeLillo o utiliza como uma bolha privada em que seu protagonista consegue transitar pela sujeira da cidade – sujeira que ele ajuda a perpetuar – sem se contaminar. Em “Passeio Noturno”, Fonseca o utiliza como uma máquina relaxante para matar pedestres. Em ambos, o carro é potência, um objeto que segrega, que impede os outros de alcançá-lo.

Agora, vamos para os fatos.

Recentemente, o carro foi o protagonista da história de duas pessoas: Rodolpho Carlos da Silva e Antônio Avelino dos Santos.

Rodolpho matou um agente da Lei Seca e não foi preso.

Antônio Avelino dos Santos matou um idoso e foi preso.

Qual a diferença?

Rodolpho é filho de magnata da indústria alimentícia, neto de ex-vice-governador e herdeiro de filial da Globo e de tudo que o pai comanda.

Antônio é flanelinha.

O carro para Antônio deve ser só um carro. Um veículo. Normal.

Para Rodolpho é a exibição da sua potência. É Viagra. Riqueza. Uma persona mutante e invencível. Um transe veloz. É um tapa na cara de todos que estão abaixo dele, inclusive do agente que ele assassinou. Um carro para ele significa o mesmo que para Packer e o protagonista do “Passeio Noturno”: força.

Vejam a performance de Rodolpho no Porsche:

Assim como o protagonista do “Passeio Noturno”, Rodolpho estava desopilando. Bem, não vou dizer que o rapaz teve a intenção de matar Diogo Nascimento de Sousa, o agente da Lei Seca. Não vou dizer que ele saiu da farrinha em algum canto top de João Pessoa, com os amigos, e disse: “hoje vou matar um agente da Lei Seca”. Claro que não, queridos herdeiros que estejam lendo o meu texto. Mas ele saiu bêbado, louco, pegou na direção, acelerou e ligou o foda-se, então é claro, ele não estava se importando com nada, que mané Lei Seca, que mané vida, que mané alguém na minha frente, que se foda tudo. Vejam o vídeo acima. Sim, é isso mesmo: o garotão estava mucho loko.

Rodolpho dirigia o Porsche e passou com tudo na blitz da Lei Seca, assassinando Diogo. Rodolpho fugiu, mas a placa do automóvel (PBX-0909 – Brasília – Distrito Federal) caiu e foi recolhida. Até então, Rodolpho ainda não foi preso. Até deu uma passadinha na Central de Polícia, mas não ficou lá.

O que incomoda é que Rodolphinho não estava se importando com nada, meus amigos. Não estava porque o poder permite isso. O poder permite que você não se importe com nada. O poder permite que você faça o que bem quiser. Enfim, é claro, o assassinato cometido pelo rapaz causará um estresse na família. Um “mal estar”, digamos assim. Mas nada que não possa ser resolvido. Os advogados do herdeiro vão enrolar esse caso por alguns anos. Adiar muita coisa. Meter muitos papeis na mesa. Adiar um pouco mais. Enfiar dinheiro nos bolsos certos. Enrolar. Adiar. Fazer jantares, pois essa galera adora jantares. Daí vão chamar a galera certa pra umas festinhas particulares cheias de menores de idade, as famosas “novinhas”. Daí adia mais. Rico é um bicho sórdido. Olha, eu não odeio ricos, até conheço alguns, mas sim: eles são sórdidos. Eles são sórdidos pra caralho. Amam putaria e comida cara. O poder e dinheiro em demasia causam isso: falta de limites e um apetite voraz pela destruição. Comida e putaria, putaria e comida. E tome orgias, festinhas, reuniões, dinheiro no bolso, apertos de mão, etc. Uma hora a mídia esquece e o menino vai ficar bem. Deixa ele escondido por um tempo. Já já a galera deixa de falar nisso. Vão enrolar o caso por anos. Vão sim. E caso um dia role do moleque ir pro tribunal, eles arrumam um jeito dele vazar. Foge do país, identidade nova, vida nova, tchau. Um amigo meu disse que depois ele pode até voltar e se candidatar a deputado federal. E ganhar.

E o flanelinha? A história dele é mais rápida.

O flanelinha Antônio Avelino vive em João Pessoa também. Ele estava lavando carros. O proprietário de um deles o entregou as chaves para que fosse feita a lavagem interna. O flanelinha decidiu posicionar o carro de forma que facilitasse a lavagem. Sem ser condutor habilitado, sem ter costume de dirigir veículo de câmbio automático e com o agravante de ter ingerido bebida alcoólica, Avelino subiu na calçada, atropelando Wilson José dos Santos, de 73 anos, que sofreu fratura exposta e morreu horas depois no hospital.

Menos de 24 horas depois do atropelamento, o flanelinha enfrentou uma audiência de custódia no Fórum Criminal e foi conduzido para o presídio do Roger. Ele está cumprindo prisão preventiva, por tempo indeterminado.
Em um jornal, li a manchete: “Ricaço em casa e pobre no Roger”.

Lembrando que recentemente o filho do Eike Batista, o Thor, foi absolvido por atropelar e matar o ajudante de caminhoneiro Wanderson dos Santos, de 30 anos, em um acidente ocorrido no dia 17 de março de 2012.

Mais um herdeiro assassino solto.

Quantos ricos bêbados atropelaram alguém e se safaram?

Muitos.

A pergunta que desejo levantar é essa: por que um continua solto e o outro preso?

Obviamente que a condição econômica para contratar advogados em tempo hábil para conseguir um habeas corpus fez a diferença nesses casos.

Mais isso é justo?

Entrei no âmbito dos carros para expor a injustiça dos atropelamentos no país. Todos devem ser punidos, mas só o pobre toma no cu.

Isso é justo?

Até quando esses herdeiros assassinos continuaram enchendo o rabo de cachaça e matando gente por aí sem se importarem com nada?

O carro é a extensão do corpo de um poderoso. Um anexo da sua conta bancária. Um poderoso precisa de um carro poderoso ou ninguém acreditará que ele é poderoso. O carro de um poderoso é a marca que ele deixa para trás pela fumaça do cano de escape. Uma fumaça limpa. É também o registro de sangue que ele deixa nos corpos quebrados no asfalto após uma bebedeira. É um outdoor da sua alma. Etc. Enfim, o que importa é que com o tempo tudo irá passar, Rodolphinho, você vai ver só, vai passar sim, tá.