A maldição de dançar com o Diabo
“E se este mundo for o inferno de outro planeta?” a pergunta é creditada ao escritor inglês Aldous Huxley (1834-1963) que, dentre outras obras escreveu “Admirável Mundo Novo”, um romance distópico (inverso da sociedade perfeita – utópica), publicado em 1932. Nele as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em harmonia com as leis e regras sociais, dentro de uma sociedade organizada por castas. A lembrança deste autor e da pergunta a ele atribuída, nos vem a propósito da leitura de “Satan me tirou para dançar” da escritora Vivian de Moraes (Editora Penalux, Guaratinguetá-SP, 2016, 116p).
Nele estão reunidos 40 pequenos textos. O primeiro, “gênese” subverte a tradição bíblica e narra a criação do universo por Satan. O último, de caráter apocalíptico, se chama “Satan me tirou para dançar” e, como se deduz, entre eles vão os outros, que evidenciam a saga humana vista sob uma perspectiva presente, e ambientada no Brasil diabólico dos nossos dias. Criativo não? Pois.
São textos de uma prosa bárbara, arrebatada, intensa, de adjetivação pesada onde desfilam personagens sombrios a viver a desnorteante realidade banal e corriqueira de maldades, violências, linchamentos ou pura e simples maldade, onde se ouvem impropérios e vociferações. E onde (e isto é marcante), o sexo como fuga ao desespero existencial – a competição com a morte na fugacidade do orgasmo - explode em toda sorte de desajustes. Acostumamo-nos a este estado de coisas, a estar no mundo de maneira brutal e cruel, e nos tornamos cúmplices por indiferença quanto à sorte do próximo, até que aconteça de o próximo ser nós mesmos...
Entretanto, é quando Vivian solta às rédeas a uma ficção de pendor psicossocial que sua prosa nos parece crescer em significados. Dois exemplos pungentes são os contos “a camisa” e “a pasta”. Nestes vem à tona a desumanização naturalizada dos personagens traduzida no primeiro, por uma fixação doentia pela aparência física impecável que deve deixar transparecer no ambiente de trabalho. No segundo, um funcionário de uma empresa aferra-se desesperadamente a sua pasta que contém todo o vínculo “presente e futuro” com o empregador. São textos que mostram com clareza e ironia corrosiva o caminho (muitas vezes voluntariamente traçado), que desventura e coisifica o trabalhador regido pelas leis de mercado e por um patronato de cobiça demoníaca. A situação limite do diálogo entre o pescoço e a guilhotina vivida por milhões de brasileiros no mercado de trabalho.
O último texto da obra, de uma criatividade digna de nota, é justamente o conto-título, “Satan me tirou para dançar”. Nele se descortina uma cena dantesca que nem Aldous Huxley ou (menos ainda), Álvares de Azevedo – (1831-1852), escritor brasileiro que escreveu a peça teatral “Macário”, onde há também um encontro com Satan, e de quem a autora se valeu com uma frase usada como epígrafe no livro –, se dariam conta de inventar. Nele quatro arcanjos (anjos da mais alta estirpe, aqui corrompidos), se reúnem numa jogatina regada a baseados, absinto, sexo, caipirosca de maracujá e, como não poderia deixar de ser, na companhia de quatro putas. A jogatina se desenrola até que Satan, o dono do puteiro e da orgia, tira a narradora para dançar. Bizarro até mesmo no inferno, atualíssimo cá na terra, e no Brasil então...
Ao fecharmos o volume fica-nos a vaga impressão de que se Vivian de Moraes levasse essa narrativa um pouquinho mais adiante, após o diabo ter tirado a narradora para dançar, o desfecho seria este:
“... e ao som da suave música que dançavam, Satan sussurrou baixinho e sorrindo em seu ouvido:
- A terra é um inferno porque sois vós os demônios”.
Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.