6 de janeiro de 2017

No momento não queremos isso

 

Oi.

Tudo bem?

O que você quer da vida, artista?

Inúmeras tentativas e nunca desistir. Você bate em milhões de portas comidas por cupins ceifadores de sonhos. Uma carreira longa e cansativa. Um esforçado. Aplausos falsos e sorrisos amargos. Persistente ou teimoso? O editor que nunca aprova o seu texto. Nunca aprova. Você insiste, mas o editor, o mundo, sua mãe, amigo, papagaio e namorada dizem “no momento não queremos isso”. Editor movendo a cabeça negativamente e sussurrando com aquela voz mansa “não publicamos esse tipo de livro. Não dá certo. Muito… Sei lá”. Ele faz uma careta estranha, contorce os lábios, os olhos encolhem, ele levanta as mãos com talco pra cima e repete: “sei lá”.

Um romance sobre a ditadura?

Um romance sobre os refugiados?

Um romance sobre um romance?

Um textão no Facebook?

Poemas trocadilhos?

No momento não queremos isso.

“Como eles conseguem?” Você se pergunta. Andando pelos lugares em busca daquela tal de inspiração, algum ar de criatividade que esteja vagando a solta por aí. Como? Deve ser porque eles escrevem e você não. A resposta não é tão difícil.

Até que você liga o foda-se e lança por conta própria, pois você conheceu um produtor gordo e fedido e ele quer fazer um filme do seu livro independente. Você quer atores famosos: Cauã Reymond e Cleo Pires interpretando um casal louco e apaixonado por drogas e liberdade. É isso aí, o lance é fazer cinema, porra. Roteiro dá dinheiro. Um prêmio talvez?

Não.

O produtor não tem dinheiro para bancar os seus sonhos, pequeno gafanhoto. Escreva algo mais vendável. Ajuda o cara. Algo menos transgressor, poxa. Algo que dê para conseguir estrelas do tapete vermelho. O Cauã e a Cleo disseram “no momento não queremos isso” pro seu projeto metido a porra louca. Um pouco de lágrimas nessa mistura e talvez consiga um Oscar?  Ou talvez um pouco de deficiência mental e guerra? Política? Explosão momentânea de criatividade. Não, o pódio ainda está longe, artista.

Talvez se retratasse o meio político? Um rebelde com causa? Pedofilia em cantos improváveis? Mais contorção facial.

Um produtor lhe vê novamente e pergunta: “quer escrever um roteiro comigo?”

Um contrato. O produtor feliz por ter enganado mais um trouxa. Você feliz por ser um trouxa. Escritores são trouxas. Falta a história ideal, artista inútil. Eles confiaram em você e deram um prazo. “Crie cifrão.” Trabalhe como um louco. Isole-se do mundo, corte o sexo da lista – ela nunca esteve presente mesmo – ame a si próprio e o teclado. Trabalhe como um bicho dopado de ritalina. Evite respirar. Eles querem para ontem esse negócio. Go go.

Um relato de amor na II Guerra Mundial. Arthouse. O aroma perfeito para um prêmio em Sundance. Atores queridinhos e trilha sonora da moda, uma releitura de um clássico antigo.

No momento não queremos isso.

Estamos no Brasil, roteirista desgraçado. Se liga.

Uma série sobre jovens em busca de trabalho.

Um filme sobre o governo golpista do Temer.

Um filme de humor sobre o Olavo de Carvalho.

Um filme sobre a vida da Suzana Vieira.

Um filme sobre a minha vida de merda.

Um filme sobre a ditadura.

Um filme sobre um filme.

No momento não queremos isso.

Machado de Assis, o contista perfeito. Nos tempos antigos em que tudo era escrito com tabuinhas de barro cozido, fibras vegetais e tecidos. Uma história sobre tudo isso: antiguidade e um escritor morto e renomado.

Muito denso. Muito histórico.

No momento não queremos isso.

A luta contra a sociedade capitalista. Um homem contra todos. Um ator de ação para interpretar o herói revoltado. Um ator premiado para interpretar o vilão capitalista.

No momento não queremos isso.

Os jornalistas velhos e donos da cultura da sua cidade natal lhe desprezam. Você é autor de vanguarda. Metidinho. Pensa que é grandes merdas. Agora pensa que é cineasta. Vê se pode. Aqui não lhe ajudaremos. Boicotem esse puto. Você é boicotado.  Uma vida negada de contatos. Um zero a esquerda. Fracasso. Derrotado. Um abismo sob seus pés. Dance na miséria, artista, dance, surte, você é o vazio dentro do vazio, o nada em busca do tudo. Se eu morrer conseguirei o sucesso? Adaptações? Um escritor maldito e suicida?

Já existe. Tudo já existe.

Você quer o sucesso ou a literatura?

Os dois não podem andar juntos, pequeno gafanhoto.

Quem disse que não?

Os velhos cuzões e retrógrados que insistem em dizer que literatura é o que eles acreditam e fim?

O sucesso ou o cinema arte?

Como juntar o cifrão com a qualidade artística?

Processo e resultado.

Lute, pense, crie. Vamos.

Hmmmm, você pensa.

Tornar-me um assassino e contar em detalhes biográficos as minhas brincadeiras particulares em uma história grande, bonita e sangrenta?

Talvez.

O tempo chega. O produtor tira a carteira e mostra as notinhas. “Estamos chegando lá, artista.” Eles dizem. Você vai escrever um Reality Show. Um falso Reality Show. Que se foda o público. É isso. Pronto. Done.

Você topa.

Primeiro faço porcarias, depois faço o autoral.

Pobre e tolo, artista.

Eis a ideia do seu roteiro:

Um Reality Show com modelos top e doidonas.

Um pouco de boca: muitos beijos quentes entre as modelos do Reality Show. Todas com bocas carnudas. Gostosas. Tudo em câmera lenta. Um pouco de loucura: um psicopata com uma máscara ataca as modelos do Reality Show. Um toque mais moderno: todas lésbicas. Um pouco de comédia: uma das modelos é viciada em sexo anal e gosta de cagar no pau dos caras. Um pouco de drama: o psicopata já foi casado com a viciada em sexo anal.

Amor passado. Perseguição e sangue. Tudo isso ao som do Nine Inch Nails e Garota Safada.

O público pode aceitar. Talvez eles engulam essa porcaria e os cifrões entrem. Enquanto o roteiro não é aceito, você começa a sair com uma mulher rica e conhecida, uma atriz velha e rabuda do meio. Finalmente você usa a boca da forma correta.

E o Reality Show?

No momento não queremos isso.

Porém, você persiste. As modelos. O roteiro do ano. O produtor acionado novamente: a sua namorada que o contratou dessa vez. Ela disse: “ele é um amigo antigo, vai dar certo dessa vez”. Deu certo. Deu mesmo. Ele leu e perguntou: “você mudou alguma coisa?” Você negou. Ele diz “mudou sim, está ótimo isso!”

Você diz que mudou.

É a chance de crescer na vida. Tudo está ao seu favor.

O produtor está bem sorridente.

Acredite no seu escrito polêmico e aterrorizante.

As Modelos Extremas - um Reality Show que você nunca viu!

E se a mulher viciada em sexo anal fosse um homem?

No momento não queremos isso.

Você corta.

Uma pausa momentânea nessa vida se faz necessário.

Pausa.

Um casamento. O seu casamento: muitas fotos e capa de revista. Você é alguém, cara. Você consegue mostrar o seu talento para todos, você consegue engravidar a sua esposa famosa que está na menopausa, ela mesma, a histérica e polêmica que emplacou o seu projeto, você consegue crescer na vida, você consegue mostrar As Modelos Extremas para todos, ibope alto, sucesso, o seu livro autoral, mas não tão autoral assim, sai da gaveta, o Cauã se interessou, você trai a sua mulher com uma dançarina gostosa, você se torna uma figura importante no meio e você se torna agressivo. O seu livro independente é adaptado para o cinema. “Cauã e Cleo em suas mãos, artista.” Amado e odiado. Uma lenda viva do entertainment. Cheira pra caralho, eles dizem. Você engordou, narizinho de platina. Sim, o homem que tentou ser adaptado de qualquer maneira, um amante das artes, amante da literatura especificamente, um virtuoso da degradação humana, vendeu a alma para todos e sobrou isso que você vê no espelho: sombra. Você sabe o que deseja da vida, achou o seu cantinho no plano universal, come todo mundo só pelo prazer de ser escrotão, os velhos jornalistas chupam seu pau, a cidade te respeita, o Brasil te respeita, os seus livros ridículos vendem e são traduzidos, a sua esposa morreu, você cuspiu no caixão, “tchau, puta”, a dançarina engravidou, ela abortou, As Modelos Extremas está na décima segunda temporada, você tá rico, você comeu todas as modelos, você comeu o cu da modelo que curte anal e ela te cagou todo, você riu e cheirou pó em cima da merda dela, você escreve biografias de atores respeitados, você é um traste, você conseguiu, você chegou, você tá acabado, maracujá de gaveta, obeso, voz grossa demais, estranha demais, câncer de garganta, você não é mais você, hemorroida cerebral, você é uma parede branca em ruínas, manco, torto, produtor de sucesso, roteirista que concretiza o projeto que desejar, o homem do projac, o ídolo dos mortos, você é um persistente, um exemplo, você ceifa sonhos, alcoólatra, feliz, muito feliz, nossa, você é feliz de verdade, artista, aliás, nem tão artista mais, agora você é outra coisa, uma coisa amorfa, uma monstruosidade qualquer, uma ferramenta do caos midiático, algo que ninguém saberia definir, e você viverá assim até cavar a terra com os dentes e ali ficar, sem ninguém ao redor, só o barro e as minhocas roncando na escuridão de um legado turvo.

Fim da pausa.

Essa é a sua vida artística. Este é o seu legado. O fim do idealizador do reality Mulheres Extremas. Uma história de muita luta e vitórias.

Legal, cara, aplausos, legal mesmo, mas no momento não queremos isso.