5 de janeiro de 2017

Duas histórias de liderança

História #1

 

Na escola em que eu estudava quando tinha nove anos, era permitido, uma vez na semana, levar algum brinquedo de casa. Acho que a ideia era socializar o seu com o dos outros, sair do universo particular de brincadeiras solitárias, para a construção de mundos complexos a muitas mãos. Mas eu era uma criança e, como todo adulto sabe, dentro da cabeça de um ser que ainda não atingiu sequer a puberdade, muitas coisas podem ser engendradas.

É aqui onde entra o Mardem. Ele nunca foi meu grande amigo, mas quando viu a coleção de carrinhos que eu havia levado dentro da minha maletinha (de plástico) especialmente para comportar aqueles dez mini super veículos, aproximou-se de mim como se sempre tivesse sido meu amigo desde, digamos, o berçário. Eu não dei muita trela porque o Mardem andava com gente odiada na escola por todo mundo. Além do mais, meus parcos nove anos já me davam a malícia necessária para pensar comigo: Aí tem.

E tinha. Levei uns quatro para brincar no pátio na hora do recreio e deixei os demais guardados dentro da tal maleta, num vão que tinha logo abaixo da minha carteira. Levar para o recreio apenas o que fosse utilizar e o restante, bem guardado naquele espaço. Assim eram as regras, e naquele tempo se pensava mais em cumpri-las do que em quebrá-las, sob o medo da punição dos professores. Mas essa benevolência toda estava prestes a ser dizimada.

Entramos todos na sala ainda em fila. Suado e cansado, eu só queria guardar meus carrinhos e descansar alguns minutos antes da aula recomeçar. Quando abri a maleta, a surpresa: se havia alguma lembrança de que ali algum dia havia habitado algum carrinho de brinquedo, era apenas devido a marca que eles deixavam no estofado de um veludo delgado, que pretendia dar algum luxo a um produto meio vagabundo que deveria ter sido feito por alguma criança da minha idade na China. Não demorou muito, porém, e alguém me soprou no ouvido: “Teus brinquedos estão todos debaixo da carteira do Mardem”. Fiz que precisava ir à lixeira, e antes de passar pela carteira dele, dei uma espiada no que havia embaixo. Estavam mesmo.

Como um assassino de aluguel que planeja tudo meticulosamente antes da execução, engoli a raiva e voltei para o meu lugar em silêncio. Quando a última aula acabou, eu disse para os meus amigos à minha volta: “Thiago, Helano, Marcelo, Roberto, Sandro, Bruno, fiquem aqui um instante, preciso conversar com vocês”. Ninguém se mexeu. Contei para eles o que eu tinha em mente: no dia seguinte, na hora do recreio, um deles iria atrair o Mardem para a sala, que ficava aberta, e quando ele entrasse, eu fecharia a porta e todos nós, de lápis já devidamente apontados, deveríamos enfiá-los no braço dele. Sem dó. Era o que ele merecia por ser um ladrão, julgava eu aos nove anos.

No dia seguinte, com o plano posto em ação, Mardem atraído para a sala e porta fechada como se fosse um filme de horror, somente Marcelo teve coragem de enfiar o lápis no braço do menino. Mesmo assim, foi o suficiente para causar um estrago considerável. Do braço dele um sangue espirrava ininterruptamente, como se fosse um esguicho de água para grama. Ele gritava histericamente que ia perder o braço, e eu saí da sala caminhando devagar em direção às escadas. Marcelo levou uma suspensão de três dias e Mardem saiu da escola no ano seguinte. Missão cumprida.

 

História #2

Sempre fui um garoto baixinho. Na infância, rechonchudo e de óculos, era a vítima perfeita de quem se achava no direito de tirar alguma vantagem de mim, mesmo sendo eu um menino repleto de amigos que estavam constantemente ao meu lado. Até que veio o episódio que fez tudo isso mudar.

Mário tinha uns dois anos a mais que eu, o que naquela idade significava muita coisa. Um dia, durante o intervalo das aulas, lá estava eu com minha merenda. O pedido dele era na verdade uma ordem disfarçada: “Me dá um pedaço e um gole do teu suco?”. “Não dou”, disse eu. Teria sido mais fácil dar. Mas eu não nasci com a insígnia da perfeição aferrada aos meus brios. Não me sentia obrigado, como de fato não era. Desde quando eu tinha que me obrigar a dar algo a alguém de quem eu não gostava? “Compre o seu”, complementei. Foi o que bastou. Mário meteu o pé no meu lanche, e tudo foi ao chão, inevitavelmente.

Como no ano anterior, juntei a minha dignidade, apanhei o meu lanche que agora havia se transformado em lixo, procurei a lata mais próxima e fui para a quadra, onde as pessoas já começavam a formar a fila para subir as escadas ao som de Moonlight serenade, música que significava o fim do recreio. Já na sala, pedi a alguns amigos que me ajudassem a procurar uma prancheta que tivesse, atrás do pegador, um prego pontudo. É preciso dizer que, ao redor de toda a circunferência da sala, pranchetas eram penduradas lado a lado, para as aulas de artes. Um dos  meus amigos encontrou o que eu precisava e a posicionou estrategicamente perto de mim. Também assim como no ano anterior, disse que um deles atraísse minha presa para a sala. Para não correr riscos de que o plano não saísse como eu queria, disse a eles que eu mesmo iria executá-lo.

Dessa vez, porém, eu estrava atrás da porta. A ideia era, assim que o Mário passasse, tascar a prancheta na cabeça dele e vê-lo sangrar. Antes, contudo, eu queria chamar a sua atenção para que ele se virasse para mim. Era imprescindível que eu visse sua cara de terror um segundo antes de receber um prego bem no meio da cabeça. E assim eu fiz. Mas fiz pior: o terror o paralisou, e eu puxei a prancheta para a frente, rasgando o couro cabeludo dele alguns centímetros. Em questão de segundos, sua cabeça ficou banhada em sangue. As crianças corriam desesperadas, os professores de outras salas foram acudir o delinquente que chutara o meu lanche. E eu fiquei sentado, vendo todo esse circo pegar fogo e esperando que a coordenadora viesse me pegar pelo braço.

O preço a pagar desta vez, entretanto, era mais alto, e eu fui expulso do colégio. Muitas conversas depois, meus pais se comprometeram a me levar a um psicólogo semanalmente. Consegui voltar para a escola mediante a promessa de que a cada não sei quantas sessões, este profissional deveria emitir uma declaração de que eu não era mais um risco para as outras crianças.

Mais de vinte anos após essas histórias, a pergunta: para onde foi esse ser tão persuasivo, tão empenhado em liderar colegas, tomar a frente, dar ordens e dizer exatamente como os planos seriam executados?

Morreu. Morreu porque aquele garoto cresceu e compreendeu que muito do que hoje se chama de liderança na verdade não passa de uma ideia criada para que os seres humanos, cada vez mais ultraconectados e cada vez mais solitários, possam sentir que estão no controle de alguma coisa (ou de alguém, ou de um grupo de pessoas). E uma necessidade criada é um risco, sobretudo porque o que falta em sua autenticidade lá atrás, ainda na concepção, sobra naquilo que mascara o que realmente sentimos: o desejo de ser menos. De precisar menos de tecnologia, de dizer palavras encorajadoras o tempo inteiro, de atingirmos metas travestidas de objetivos. É o apelo da dinâmica do mundo atual. Ser líder significa ser o cachorro-alfa, controlar a matilha, ser o primeiro a cruzar a linha de chegada.

Não que a possibilidade de uma vida plena exista, mas o que mais se aproximar disso não passa pela ideia de liderar nada. Ao contrário: o devir é justamente a capacidade da mudança sem que para isso tenha de se puxar alavancas, de fazer uma força antinatural. O caminho para a fluidez é a liberdade, e estar adiante é forçosamente uma luta consigo e com os outros para estar sempre à frente, antes que alguém venha e tome o seu posto, como uma gigantesca espada de Dâmocles, pronta para decepar a cabeça de quem não se mantiver atento o suficiente.

E francamente, que tipo de vida vive quem precisa olhar sempre para a frente mas não pode deixar de olhar para quem está atrás, como quem foge de uma recorrente ameaça? Eu, não. Prefiro a sabedoria da morosidade, do ócio criativo, do olhar que contempla. Somente ao conseguirmos um olhar distanciado de nós mesmos e do que nos cerca é que somos capazes de ampliar nossos horizontes possíveis. É a nossa janela aberta para dentro de nós mesmos que gera a afeição, transformada em empatia com o mundo e capaz de gerar a ternura e a benevolência, nunca o olhar do outro para nós, que muitas vezes, com um simples arquear de sobrancelha, é capaz de mostrar quem está no comando.

Talvez seja hora de abrirmos espaço para sermos regidos pela generosidade do nosso próprio olhar; ele sim, voz imperativa sobre o que somos e fazemos. Habita em mim um otimista: há tempo.