3 de janeiro de 2017

Como viver uma vida gloriosa

 

Corri para chegar a tempo. Não faria sentido eu chegar depois da morte dele. Chegar só pra enterrar o velho? Enterrar qualquer um enterra, o morto não está vendo mesmo. Daí a minha pressa em chegar. Queria ver o vô ainda vivo. A mãe tinha dito que era uma questão de dias ou horas. A morte é uma questão de inesperado, nunca se sabe quando, nunca se está preparado. Parece frase feita, e até é mesmo, mas é real: a gente não se prepara para morrer nem para enterrar nossos queridos. O vô era um querido. Olhão azul esperto, grande contados de histórias, batalhador. Tinha vivido uma vida intensa, passado por guerras, enfrentado a pobreza, ajudado gente pra caramba. Queria chegar a tempo de dar um beijo no velho, ver se eu conseguia ficar com a medalha de honra ao mérito que ele tinha ganhado na guerra, pra dar pro meu filho e recontar pra ele as histórias do biso. Só o vô pra me fazer pegar dez horas de voo e mais três de ônibus! Ele merece. O velho era guerreiro. Merece.

(...)

Cheguei cansado pra cacete. Acho que não tenho mais idade pra essas coisas. No jardim do hospital vi minha mãe fumando. Pensei que ela tivesse parado. É fora ver o pai morrendo. Ela me viu de longe. Jogou o cigarro no chão e veio na minha direção. Não gostei do olhar dela, já cheio de lágrima.

- Como ele está?

Eu não queria ter perguntado. Já sabia a resposta. Ela apertou mais o abraço e chorou sentido. Eu tinha chegado tarde demais.

(...)

Morrer é uma merda. A gente tinha que virar pó assim, instantaneamente, e pronto. É uma burocracia danada, procedimentos, rituais. Só sofrimento. Eu fiquei ali no banco do jardim por um bom tempo. Lembrei das histórias do velho. Ele adorava contar as de guerra. Contava como se estivesse vivendo tudo ali de novo. Os olhos brilhavam emocionados, as mãos apontavam as direções da memória, era incrível. Tinha a de como ele tinha livrado o batalhão dele de uma emboscada nazista. Ele era novo na época e esperto. Tinha percebido uma movimentação estranha, a cidade quieta demais e alertou o capitão.  O batalhão todo foi salvo por conta da esperteza do danado. E quando ele ajudou o amigo doente, ferido de guerra, então? O pobre estava morrendo, sangrava muito, gelava  no frio europeu. O vô tirou as meias e o casaco pra aquecer o colega. Fez um emplastro com umas ervas que ele sempre carregava com ele e conseguiu salvar o colega. Depois da guerra nunca mais se viram, mas o rapaz deu o nome do meu avô pro filho dele em homenagem ao velho. Era um herói mesmo. Mas a história que eu mais gostava era de quando ele e os amigos conseguiram resgatar uma família judia que estava fazia meses escondida nos escombros. Todos desnutridos e fracos. Meu vô foi quem ouviu o choro do bebê e conseguiram resgatá-los com segurança. Que vida tinha levado esse meu avô! Morreu velho, filhos e netos criados e cheio de histórias pra contar. Vou contar todinhas pro meu filho, pra não deixar morrer essa história de família.

(...)

A mãe chegou com um café pra mim.

“Queria ficar com a medalha dele, mãe.”

Falei logo, antes que alguém resolvesse pedir.

“Que medalha?”

Como ela não lembrava? Devia estar confusa por conta da situação.

“Aquela que o vô deixava pendurada na cabeceira da cama, que ele ganhou quando foi praça na segunda guerra mundial.”

“Seu avô não foi pra guerra.”

“Não?!”

“Não.”

A resposta dela foi simples assim. Apenas não.

“Ele tinha asma, não pôde servir.”

E a medalha? Não precisei perguntar. Ela parecia ler meus pensamentos.

“Aquela medalha que você tá falando foi de honra ao mérito do concurso de redação da escola. Seu avô com uma sobre a guerra.”

Eu em silêncio. A mãe falava tranquilamente. O vô tinha sido funcionário público a vida inteira. Nunca saíra do país. Tinha asma, o que o impedia na juventude de participar de muitas atividades. Na época se divertia inventando histórias. Sua maior glória era a medalha de honra ao mérito do concurso de redação. Se orgulhava dela. Tinha sido um homem bom, pacato e simples. Só isso.

“Ele gostava de contar histórias quando você era pequeno.”

Sorri.

“Ele era bom nisso.”

“Era.”

“Posso ficar com a medalha?”

Ela passou os braços pelos meus ombros.

“Claro.”

E assim foi. Enterrei meu herói de guerra. Peguei a medalha. Levei comigo suas histórias gloriosas.