Pandemônio, de Geraldo Carneiro
Recentemente, os jornais publicaram a notícia de que o polivalente Geraldo Carneiro (poeta, tradutor, dramaturgo, letrista, etc) está prestes a se tornar um imortal. Ele é um dos postulantes à cadeira deixada vaga pelo crítico teatral Sábato Magaldi na Academia Brasileira de Letras. Aproveitando a ocasião, arrisco aqui alguns comentários sobre a faceta poética de Geraldo Carneiro, analisando seu livro de 1993, chamado Pandemônio.
Comecemos do começo. O primeiro poema do livro, intitulado rejoyce, já nos dá uma boa ideia do que veremos adiante. Transcrevo-o na íntegra:
riverão, pós Eva e Adão,
Sir Tristão, violador d´amores,
ainda não revoltou do Paraíso Perdido
pra relutar sua guerra penisolada,
mas sabe, em sua eros-dicção,
que a rosa rosae rosae espera rubra
criptografada à flor do rabo de Isolda
e em sua lábia labirinto dela
ouvirá (quem sabe?) o cântico dos cânticos:
a sting of beauty is a rejoyce forever
Nesse curto poema, dez versos apenas, fica evidente a vontade referencial, citacionista, parafrásica, paródica, do poeta. O poema condensa uma série de indícios de outros discursos da cultura ocidental, levando o leitor a saltar de um para outro e estabelecer entre eles elos inesperados.
Vejamos. A Bíblia aparece em Eva e Adão e no cântico dos cânticos. O mito de Tristão e Isolda também aparece. Milton surge no Paraíso Perdido. O latim de rosa rosae rosae nos lembra (por que não?) a citadíssima a rosa é uma rosa é uma rosa de Gertrude Stein. E o poema termina com uma paródia do famoso verso de John Keats a thing of beauty is a joy forever.
Duas dúvidas, entretanto. A primeira palavra do poema, riverão, parece sugerir Glauber Rocha e seu romance Riverão Sussuarana. No entanto, o mesmo verso surge novamente em outro poema, no início de Pandemônio, só que com duas diferenças: ao invés de riverão, está lá Rioverão, com o acréscimo do o e da maiúscula. Outra palavra que me encafifa é penisolada. Pensei que pudesse ser peninsulada, como aparece no poema odisseu, o que, no caso de penisolada, sugeriria um italianismo (penisola, península em italiano). De toda forma, esses dois vocábulos parecem também apontar para alguma referência externa ao poema.
Voltemos ao texto. Além das referências, que nos levam para além do poema, Geraldo Carneiro é um hábil manipulador de palavras, o que nos conduz de volta para dentro dele. Exemplos: a criação por justaposição do vocábulo eros-dicção. A palavra evidentemente ecoa erudição. Somos levados então a relacionar as duas palavras e levantarmos alguns sentidos. Vemos a erudição como uma fala erótica, sedutora. Ou ainda como uma vontade de possuir um discurso, a essência mesma da erudição. A atração do conhecimento, a vontade de possuí-lo. Puro eros.
Outras duas palavras valem ser destacadas por seu uso hábil no poema sem, porém, sofrerem qualquer modificação. São as palavras revoltar e relutar. Nos seus sentidos mais comuns, revoltar significa causar revolta, indignação, e relutar, significa resistir, opor forças. Dado o contexto em que são colocadas, as palavras adquirem o sentido de voltar de novo, no caso de revoltar, e de lutar de novo, no caso de relutar. Ambos sentidos possíveis para esses vocábulos, porém pouco utilizados. O que o poeta faz é recuperar esses sentidos menos usuais, fazendo com que o leitor veja essas palavras de forma diferente, com um sabor de invenção poética.
Por fim, que na verdade seria o começo, o título segue a mesma linha de manipulação das palavras. Rejoyce ecoa o vocábulo inglês rejoice, que significa fruir, gozar. A mera substituição do i pelo y já expande consideravelmente seu significado. Rejoyce passa a ser uma clara referência ao escritor irlandês James Joyce. Podemos ver o título então como uma homenagem a Joyce, uma releitura ou uma nova fruição dele e dos mecanismos verbais que empregava, como o uso de neologismos, de fragmentação e junção de palavras, de mistura de referências e de discursos. Em suma, mais ou menos os mecanismos que o próprio poeta, no seu curto poema, utiliza.
As características delineadas nesse poema perpassam todo o livro. Poesia em hipertexto, em que cada nova referência, cada nova citação, abre uma janela para outro texto, outro autor, outro discurso, outra língua. Uma poesia que capta a profusão e confusão discursiva de nossos dias, muito antes deles. Em 1993 a televisão era o grande meio de comunicação de massas. Hoje, a internet cumpre esse papel. E não há lugar onde a confusão discursiva seja maior que na rede. Ali, lemos aos trancos, aos pedaços, com uma coisa puxando outra, um texto que chama um vídeo, uma imagem que chama um texto, mais as mensagens dos amigos, que nos sugerem mais uma infinidade de informação. É difícil não se perder nesse labirinto informacional.
Dois poemas sintetizam bem essa condensação discursiva. São os poemas narrativos Pandemônio e Manu Çaruê. O segundo é uma espécie de ficção científica que inclui a primeira missa do Brasil reencenada por um computador e um protagonista meio Macunaíma, que ao invés de virar constelação quando morre, vira anúncio de neon. Já o primeiro é onde vemos o ápice do estilo turbilhonante de Geraldo Carneiro. Não por acaso, é o poema que dá nome ao livro. Nele, conta-se a história de Judy Jungle, tornada Lady Ferguson pelas mãos do Demo. As referências aqui abundam: Camões, Nietzsche, histórias em quadrinhos (especialmente suas características onomatopéias como POW! SPLASH! CATAPAU!) cultura pop, Guimarães Rosa, Vinicius de Moraes, James Joyce, Florbela Espanca, etc. Curiosamente, temos até referências, digamos, proféticas. Judy Jungle, tornada rica e famosa por um pacto com o Demo, vira Lady Ferguson e é entrevistada pelos jornais. Perguntada sobre filhos, responde: (...) mandei adotar 36 crianças do terceiro mundo, uma de cada cor. Alguém aí pensou em Angelina Jolie?
Não sei se Geraldo Carneiro merece a imortalidade da Academia. Mas seu Pandemônio ainda fala fácil ao nosso tempo e nossa sensibilidade. Consegue misturar registros da alta cultura e da cultura pop sem cair na facilidade dos jogos de palavras ou das tiradas espertas. Suas tramas discursivas, seu mar de referências e citações, não caem em mero erutidismo pomposo, sempre mais preocupado em ressaltar o autor do que o texto. Geraldo Carneiro, navegador habilidoso, não naufraga nos redemoinhos das falas. Elas são sua matéria prima. Seu Pandemônio, talvez, seja mais ordem do que caos. Não é uma mera aglomeração de cacos de textos. É, antes, um uso criativo desses textos que nos cercam e dos quais não conseguimos escapar. Não é um recortar e colar. É um referir, desenvolver, recriar.
Quiçá valha a imortalidade. Ou ao menos um belo e brilhante anúncio de neon.
Cahoni Chufalo, formado em Letras, com pós-graduação em critica e curadoria de arte. Fez a curadoria das exposições Memória Imprensa, em Ouro Preto e Figuras Recorrentes, em Novo Hamburgo.