“Marcados”: polifonia, violência e poder
“Marcados” (Penalux, 2016), é uma obra póstuma do escritor Sergio Napp, morto no ano passado. Constituída por um jogo, um quebra-cabeças que segura o leitor – mesmo o mais desconfiado –, o livro tem três narradores que se revezam na tarefa de contar uma história – formulada por diversas outras histórias, num mise-en-abîme – de poder, violência e interesses. A capa de Ricardo A. O. Paixão mostra três rostos de perfil em branco e preto.
A ação se passa durante um mês de janeiro qualquer. O transcorrer da trama é apresentado, inicialmente, por Daniel, que começa o relato em um dia 5 de janeiro. No dia 7, entra a voz de Joffre; e no dia 10, de Fábio. Esses três personagens vão contando as histórias da morte de uma modelo, de uma doença corrosiva que se interpõe a um grande amor, uma perseguição que é uma verdadeira caça, o sexo sem barreiras, a busca mesquinha pelo poder, entre outras.
Se a estrutura do livro é extremamente moderna, ao dividir a narração numa polifonia inteligente e que prende o leitor, também propicia múltiplas formas de leitura, ou seja: uma leitura linear da história; a leitura possível e interessante de seguir apenas um dos narradores de cada vez; e, finalmente, a leitura em retrocesso, começando do fim.
Outra característica interessante, que imprime certo mistério ao enredo, são pequenos textos ao final de certos capítulos. Esses textos estão em itálico e parecem não esclarecer muito, mas agem sobre a curiosidade do leitor. Neles, há um Homem e uma Mulher.
Cada capítulo inicia-se por uma data seguida pelo nome do personagem-narrador em questão. Assim, o autor faz uma progressão que se inicia no começo do mês com Daniel e termina no dia 21, com o mesmo Daniel.
Esse personagem-narrador, aliás, não parece ser o mais “forte” do livro no começo, embora durante toda a obra seja o que mais tem voz e vá conquistando o receptor aos poucos, mostrando a ele seu desassossego com a morte e a perseguição. Ao longo da narrativa, Joffre, o segurança de um político que ganha notoriedade, é um pouco mais bem caracterizado que os outros dois. Fábio é um arrivista que se também se mete em política, vai casar com a filha do mesmo político, mas aparece pouco.
Um dos pontos mais importantes do enredo está numa brusca interrupção: lá por volta do dia 20 de janeiro, Daniel deixa de seguir a sequência, narrando o dia 5. Então uma morte é esclarecida, e o desespero de Daniel se revela plenamente:
“O mundo é um inferno com suas avenidas, habitantes sem rosto, automóveis e caminhões, barulho ensurdecedor, sinaleiras abrindo para o nada. Procuro-a por todos os cantos e em cada voz reconheço a sua. Caminho por todas as ruas que me aparecem e me sento cada vez mais só. Tenho fome, sede, náusea. A dor parece estilhaçar minha cabeça. Um profundo terror, de algo indefinido, se instala em mim. O medo me impele a caminhar e a fugir. Um desejo de me esconder em um canto qualquer e morrer. Perco a consciência.”
É interessante notar que alguns elementos dessa obra são gatilhos simbólicos, como uma pedra que Daniel toma para si como um talismã, uma pedra muito significativa para ele, mas que vai pô-lo em encrenca com a polícia.
A trama se passa em Porto Alegre, mas a fala dos personagens-narradores não está impregnada daquele modo de falar característico dos gaúchos, exceto por um ou outro vocábulo.
Em resumo, “Marcados” é um livro inovador, por tudo o que já foi dito, e mais: também por as falas das personagens não serem introduzidas por travessão ou aspas. Ao leitor cabe ter a concentração necessária para o livro, que não é exatamente de fácil leitura, como costuma ocorrer com literatura de vanguarda. Mas conhecer o romance póstumo de Sergio Napp é um privilégio e vale o esforço.
Sergio Napp (1939-2015) - Além de escritor e letrista, foi engenheiro, professor universitário de matemática e gestor cultural, três vezes diretor da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre. Autor premiado e com 26 obras publicadas, escreveu um pouco de tudo: conto, crônica, poesia, romance e literatura infanto-juvenil (três de seus textos infantis foram selecionados para a Feira Internacional do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha/Itália).