Onde crescem as rosas selvagens
Onde crescem as rosas selvagens não me permito entrar. Detrás das grandes pastagens, da relva, há um bosque. No meio desse bosque, passa um rio. Descendo esse rio pedregoso, chega-se onde crescem roseiras rasteiras. Seus galhos se enroscam entre si. No meio delas não há clareiras. Entre elas não há trilhas. Não é um jardim, de maneira alguma. Nada ali foi plantado. São rosas selvagens.
Onde crescem as rosas selvagens não me permito entrar. Certo dia, fui, olhei de longe. Tomou-me grande pavor e não segui o curso do rio até lá. Olhei de bem longe, das rosas o cheiro não senti. Olhei de bem longe, das pétalas, o vermelho não vi. Nem seus botões, nem suas folhas, nem seus espinhos. Olhei bem de longe, das rosas selvagens, só vi seus rumores.
Onde crescem as rosas selvagens não me permito entrar. Contam os antigos que quem vai nunca volta. Fica por lá, das rosas nunca trazem sequer um botão. Se perdem, ou se vislumbram. Viram lenda. Contam os antigos a lenda da rosa primeira. Sempre quando contam fazem fila para ver. Os sem coragem, como eu, querem, ao menos, ter matéria para os sonhos.
Menina Rosa Flor deitou-se com o moço errado. Foi enganada, maltratada. Na noite de outubro onde a lua brilhava, saiu de casa, vestido de dormir, não levou casaco. Passou as grandes pastagens, travessou o bosque, seguiu o rio até onde, várias pedras se embrenhavam pela planície, clareira. Rosa Flor rendeu-se a desistência. Seu sangue varou pelo solo e ao seu redor, rosas cresceram, adornando seu túmulo.
Não credito as palavras dos antigos. Não acredito que Rosa Flor para lá se foi. Não há vestígio em nenhuma árvore genealógica que essa menina existiu. As que fugiram, disso sei, tomaram caminho trocado. Seguiram as estradas, para as cidades que não param, lá longe onde as luzes coloridas brilham mais que o luar.
Onde crescem as rosas selvagens, um dia eu vou lá. Quando não tiver nada que me impeça de ir. Depois que eu encontrar minha namorada, noivar, construir minha casinha. Quando os meninos tiverem crescido, já com seus filhos. Se nesse dia eu for escolhido para a viuvez, talvez eu vá. Antes escreverei meu testamento, escreverei minhas memórias, farei todas as loucuras que a velhice me dará coragem: sabotar o trilho do trem, ou outra coisa que inda não inventei.
Nesse dia, sairei de noite. Meus filhos não lembrarão mais que têm pai. Os netos, avô. Não levarei casaco, irei no verão. Seguirei o cheiro das rosas selvagens que com a idade serei capaz de enxergar. Não terei pressa em chegar – pressa tenho hoje em ir. Vou me livrando dos empecilhos do caminho. A catarata, por esse tempo, já terá me levado as vistas. Apalparei cada pedra, cada tronco de árvore. Regarei meus cabelos com água do rio. Mergulharei feito menino.
Na noite dos anciões esquecidos, mergulharei no roseiral, divino. Não obstante meu medo da dor dos espinhos, deitarei e deixarei sob minha pele sua caligrafia. Dose terapêutica de veneno. Pois já disso hoje estou certo, naqueles espinhos há veneno. Veneno que não mata, veneno que dopa. Veneno que prepara para o beijo. Pois quem sabe que para aquele velho haja um beijo. Quem sabe eu esteja errado em não acreditar em lendas e, então, a menina Rosa irá me receber com um cálice de seu sumo. Um abraço sem descaso, regaço. E, como quando se rega, me espalhar pelas pétalas da planície, rosa por rosa, de todo roseiral que me permitirá, velho do mundo esquecido, ser dele.