Nossa cidade
Está morando em nossa cidade certo forasteiro vindo de algum lugar do norte. Ele veio no ônibus do meio-dia, que vem da capital, mas foi logo reclamando do clima frio. O Velho Rogério imediatamente percebeu que se tratava de homem do norte, com a pele grossa e bronzeada, homem acostumado com o calor.
O problema é que quem vem de fora não entende nossos costumes e se perde na primeira dificuldade.
Foi o que aconteceu ao homem do norte, apesar de o Velho Rogério o ter advertido para que não buscasse confusão com as autoridades. O homem não entendeu o vaticínio e desgraçadamente se enamorou da menina Jéssica, guria de quinze anos e já sujeita aos vícios humanos.
Jéssica é filha do prefeito, o Dr. Ribamar Steiner. O prefeito sabe que suas três filhas são a nata da promiscuidade daqui, mas não perde a oportunidade de vazar o olho ou arrancar as bolas de quem tiver o atrevimento de contar vantagem em público.
Pois foi o que o forasteiro fez. Além de andar a olhos vistos com o braço em volta da cintura de Jéssica, o homem do norte ainda teve a ousadia de mostrar a todos da cidade fotografias em que os dois questionavam as leis da física.
Tamanha humilhação o Dr. Ribamar Steiner nunca havia sofrido, pois ato vil desta envergadura não se admite por aqui, nem mesmo em política.
O Dr. Ribamar Steiner estava resolvido a arrancar as bolas do forasteiro e lhe tirar a visão por completo. O prefeito não é do tipo que mata, ele acredita que quem merece sofrer tem que sofrer, ele não pode privar nenhum vivente das desgraças que Deus lhe confere. “Os desígnios divinos não devem encontrar obstáculos em homens honrados”, foi esta a frase que ele me disse quando lhe perguntei por que não matava seus inimigos.
Mas não foi esse o destino do forasteiro, pois dois fatos lhe salvaram a vida, por assim dizer. O primeiro foi a intervenção da própria Jessica que, para desgosto do Dr. Ribamar Steiner, desabou em prantos dizendo que queria casar com o tal sujeito.
Nem o prefeito nem eu conseguimos entender a reação da garota. Mas quem um dia entendeu alguma mulher?
O segundo fato foi o conselho do Velho Rogério:
“Senhor prefeito, o senhor já ouviu falar da passagem bíblica de Jacó e Raquel? Então. Vamos fazer esse infeliz trabalhar para a cidade. Prometa a ele que se ele trabalhar lavando os pratos daqui até a menina Jéssica completar dezoito anos, o casamento será permitido. Claro que não vai acontecer casamento nenhum. A menina Jéssica é bicho novo e tem memória curta, tem o desapego próprio da idade, logo deixa de lado isso de casamento.”
“Velho Rogério, não vejo vantagem nessa sua ideia. O que eu ganho com esse desgraçado dentro da minha casa durante três anos?” questionou o prefeito.
“O senhor me entendeu errado. Eu disse que ele vai trabalhar para a cidade, ele vai lavar os pratos da cidade. Ele vai ser nosso escravo e fazer tudo que qualquer cidadão pedir. Diga para ele que é o preço para continuar homem inteiro. Se o senhor me permite, eu mesmo posso ficar responsável por ele, tenho aquele quarto gradeado no quintal da minha casa, não tem como ele fugir.”
Assim o acordo foi firmado, o forasteiro não teve opção a não ser aceitar a proposta. Para falar a verdade, ele resistiu um pouco, mas quando o Velho Rogério começou a esquentar a faca e mostrou ao homem as outras obras do prefeito, desmoronou nele a última réstia de orgulho que se mantinha. Era então um homem acabado.
Passaram-se os três anos e ninguém se lembrou da promessa, nem mesmo o próprio forasteiro. Ele não poderia mesmo lembrar-se, pois perdeu qualquer coisa da situação de homem nesses anos, perdeu qualquer coisa de realidade e hoje anda imundo e maltrapilho pela nossa cidade.
Sinto que não posso mais chamá-lo de forasteiro, ele já é um dos nossos. Nunca se soube de onde veio. Quem quiser encontrá-lo basta ir à rodoviária, todos os dias ele para e olha pensativo para o ônibus do meio-dia, com um olhar meio que de cachorro louco, com um jeito meio que de bicho perdido.
Daniel Ferreira, é contista. Autor de “Sob a Sombra da Noite” (2005). Gosta de cerveja e Radiohead