7 de outubro de 2016

“Caçada russa”: a estreia da narrativa de Flávio VM Costa

“Caçada russa & outros relatos” (Penalux, 2016), do autor estreante Flávio VM Costa, fisga o leitor de cara: o conto homônimo abre a série de 15 narrativas com um ritmo pulsante, rápido e preciso como um projétil. Nesse primeiro conto, crianças. Nos demais, gente de todo tipo, gente soteropolitana dos subúrbios e suas obsessões, seus desvios de conduta, tudo narrado com mordacidade e olho clínico.

Este livro de contos às vezes resvala na crônica, o que lhe confere ainda mais propriedade, pois é um retrato de uma cidade e seus personagens. É assim no conto “Diga lá, rei!”, um fluxo de consciência de um mendigo que parece ter mil olhos. Mas esse conto é uma exceção justamente pela voz do narrador em primeira pessoa. Nele, cabe a malandragem do mendigo em palrar pedindo moedas a uma moça, “capô de fusca” e “inchadinha”, pedindo-lhe também cigarros, enquanto vai avaliando o mundo, de repente tão pequeno, daquela metrópole, Salvador.

As peripécias de crianças e adolescentes têm espaço nos primeiros contos. São meninos descobrindo sua sexualidade, roubando carambolas de um velho sovina, tendo problemas na escola e tudo aquilo que conhecemos tão bem. Esses contos dão universalidade à obra.
“Caçada russa” é o primeiro desses contos juvenis. Um acidente confere um fim trágico e rápido, arrematado por uma sentença: “Mesmo velhinho Júlio nunca se esqueceu dos olhos do guri: castanhos, cheios de ranhura e sem brilho”, como bolas de gude gastas.

 

 

E, se falamos de adolescentes, não dá para fugir à sexualidade das personagens. O livro traz relatos de um casal liberal que faz sexo diante do filho, do jovem apaixonado que se esfrega numa colega durante a projeção de um filme na escola (“Recordações do colégio público”), melecando a calça pela primeira vez etc. Nos relatos de adultos, o sexo também é importante: o desvio sexual de um necrófilo (“Bonecas”), por exemplo.

A pobreza e a violência se fazem presente na obra. Os dilemas de um pai que anda com um dinheirinho amarfanhado na mão para comprar o uniforme da escola da filha que não vê há muito (“Ponto”) dão a dimensão de uma pobreza não apenas econômica, mas emocional. A adolescente que tenta matar o avô diabético oferecendo-lhe doces (“A dignidade dos elefantes”) para se livrar de uma rotina tediosa em cuidar do velho, mostra os dois extremos da vida, a juventude e a velhice, sendo que a filha do velho, mãe da menina, é o ponto de apoio do centro apenas como alguém que passa pela narrativa: o jogo dos extremos não tem uma mediação eficiente. A pobreza, aqui, é mental.

Deve ser desesperador para o meu avô não se lembrar de nada, não ter forças para caminhar, não reconhecer as pessoas com quem se vive, não poder conversar com elas, nem desejar ficar sozinho, pois não tem autonomia para ficar só, estar no mundo como uma mera presença, apenas respirar, comer maquinalmente, sem perceber os sabores dos bocados que mastiga – não que a comida da minha mãe ajude. A dignidade dos elefantes seria formidável nos homens; era só se atolar num canto assim que percebessem que começavam a atrapalhar.

Há também a pobreza amorosa, que anda lado a lado com a violência. É o que ocorre em “Tiberius”: um menino sádico que mutila e come ratos e quebra pescoços de pombos é observado pelo pai pouco amoroso que, ao final, vê o filho sofrer uma punição. Não a punição que ele, como pai, poderia ter dado, na forma de educação, mas uma punição dos próprios bichos rebelados e que, mesmo assim, pouco incomoda o pai.

Em “Homenagem a Carlos Franzino”, temos a violência, tema ao qual o autor não poderia fugir. “Com policiais militares, traficantes, gente correndo de um tiroteio num buraco do Nordeste de Amaralina, arranjava-se uma bala perdida e o problema estaria resolvido [...]”. Mas é importante notar que a violência se imiscui em muitos dos contos da obra, como “Tito”: neste de forma escancarada, mas às vezes de forma sutil. Pauladas, perseguições, guerrilha, tudo isso serve de matéria ao autor.

Estilo

O que é mais impressionante em “Caçada russa & outros relatos” são a técnica e estilo do autor estreante. Flávio VM Costa é jornalista, e talvez se deva a esse fato que ele tenha um estilo seguro, preciso e isento de verborragia, sem ser “seco” demais. Cada detalhe de cada conto consta ali com uma finalidade: narrar com algo parecido com uma isenção, sem faltas nem exageros.

Um exemplo está logo no primeiro conto, “Caçada russa”, de apenas uma página: as mesmas bolas de gude que encantam o guri terão a aparência dos seus olhos no arremate do conto rápido. Vale a pena uma reprodução do texto:

Henrique subia escondido o cajueiro do parque. Corria para pegar geladinho de umbu. Dava saltos acrobáticos para escapar do banho. Gostava de mijar em cima das formigas balançando o pinto. Espantava-se quando chovia e fazia sol ao mesmo tempo. Admirava as bolas de gude quando ficavam arranhadas e perdiam o brilho.
Os passarinhos sempre acertavam a cabeça de Magno. O cocô era branco e Júlio ria muito. Passarinho escroto. Passarinho safado. Passarinho filho de quenga. Júlio deu a ideia: bora fazer um badogue, velho; fazer guerra com papa-capim.
No primeiro dia nenhum passarinho morreu; no segundo dia nenhum passarinho morreu; no terceiro dia Júlio jurou ter acertado um, mas nunca acharam o corpo; no quarto dia Magno acertou a cabeça de Henrique, que caiu do cajueiro.
Mesmo velhinho Júlio nunca se esqueceu dos olhos do guri: castanhos, cheios de ranhura e sem brilho.

Esse conto anuncia o que virá no restante do livro: uma prosa certeira, com peripécias inteligentes e estilo vigoroso. É o debut de Flávio VM Costa na literatura brasileira, com uma obra que vale a pena ser lida.