Tudo bem mudar alguém?
Durante uma noite regada a alguns sushis e muita conversa, ouço a lamentação vinda de um amigo: “Cara, ela é linda, eu acho que ela é a mulher da minha vida, mas ela não tolera as minhas brincadeiras. Odeia quando eu brinco imitando o Clodovil ou algum outro gay, sai logo de perto, com vergonha. Vem reclamar comigo a toda hora, dando a entender que prefere um cara mais machão, mais viril, como se eu não fosse homem suficiente pra ela. E talvez não seja mesmo. Mas que posso fazer, se o que eu tenho de irreverente ela tem de sisuda?”.
Convenhamos, essa – e suas variáveis – não é uma queixa recente entre os casais. Basta sairmos com alguns de nossos amigos ou amigas sem o seu respectivo e o cenário imediatamente muda, como se tivéssemos de ser pessoas diferentes na frente dos nossos namorados ou cônjuges. E não temos. Somos, mas não temos que ser.
Observo esse tipo de atitude com um ar de desconfiança. O que queremos realmente como companhia para uma vida (ou até que a morte do relacionamento nos separe)? Um macho alfa, provedor, ou uma pessoa que possa exercer plenamente sua pluralidade, sua afetividade e seu bom humor? Uma mulher que possa ser plena com ou sem filhos, indo ou não para a cozinha, sentando de perna aberta ou fechada, ou a velha puta na cama e dama na sociedade? Temos mesmo de passar a vida ao lado de alguém brincando de Médico e Monstro?
Eis aí uma questão complexa, porque nada que envolva uma relação a dois a torna simples. Mas a resposta para isso deveria ser clara: a pessoa não te admite com suas peculiaridades, peculiaridades estas que fazem bem a todos à sua volta, menos para o parâmetro dela? Então o problema é a pessoa. Tchau pra ela.
Vejo muito nos casais uma vontade enorme de mudar o outro para que este se molde aos seus padrões. E não estou falando aqui em concessões, que são óbvias para quem quer viver uma vida a dois, monogâmica ou nos modelos dos modernos relacionamentos abertos. Qualquer que seja a conjuntura, não dá certo ser e fazer sempre do jeito de apenas um dos envolvidos. É preciso equilibrar as coisas. Da mesma maneira, quando se está com alguém, também é natural, no processo de mútuo conhecimento, que ambos apresentem coisas novas ao universo do parceiro, o que pode ocasionar algumas mudanças de rumo em padrões de gosto. Até aqui, tudo bem.
O problema é quando existem tentativas de controlar o que o outro diz, como fala, como age – unicamente para satisfazer o desejo do que um acha que é “o certo”.
Tenho uma amiga, casada, que quando junta dos amigos brinca, gesticula, tira sarro de todo mundo, é a própria Dercy Gonçalves – mas basta o marido avisar pelo celular que está chegando para a cara dela mudar, e a Dercy se transforma rapidamente numa quase beata. Eu não tenho dúvidas que ele conhece o lado brincalhão dela, mas seguramente com nuances diferentes da que nós, amigos, conhecemos, tal o receio de que ele a veja como ela se mostra para nós. Uma vez eu perguntei o porquê, e ela respondeu que ele era um cara que “já tinha aprontado muito na vida” e que hoje, mais recatado e um “homem de família”, não gostava dessas brincadeiras em público. Eu me calei, porque compreendi que este não era terreno que eu devesse pisar.
A pergunta que não para de bradar em meu pensamento é: se mudamos a pessoa que dizemos amar, o que podemos dizer sobre nossas próprias máscaras e hipocrisias? Estaremos sempre diante dessa dicotomia?
Num artigo que li há alguns anos, li que uma enfermeira de cuidados paliativos no Canadá fez uma pesquisa entre seus pacientes e chegou à conclusão de que existem cinco grandes arrependimentos na vida de pessoas que descobrem que estão com os dias contados, e um deles é: “Eu gostaria de ter sido mais verdadeiro comigo mesmo”.
Se isso não valer como um aviso, que cada qual arque com as consequências daquilo que achar mais conveniente para viver como verdade. E que, ao olhar para trás, não deixe de enxergar todas as máscaras que abandonou pelo caminho, ao invés de carregar nas costas todas as que acumulou para si, ao longo dos anos.