Por Nathan Matos
19 de setembro de 2016
O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe
Amar é algo intrínseco ao ser humano. Você pode dizer que não, mas sabe que estará mentindo, pois isso está incutido em nós, ao menos é o que quero acreditar. A delicadeza e a solidão, que por desventura sentimos, sempre estarão ligadas, intimamente, ao amor. O amor é quem pode representar para nós a salvação, como diria o poeta russo. E é essa salvação que está inserida n’O filho de mil homens, escrito pelo autor português Valter Hugo Mãe, e que tem agora uma nova edição, publicada pela Biblioteca Azul.
Nos últimos anos, Valter Hugo Mãe vem tido uma enorme aceitação entre os leitores brasileiros, sendo aclamado em festas literárias, como a conhecida Festa Literária de Paraty, na qual ficou extremamente emocionado da primeira vez que aqui esteve presente. Isso tudo por possuir uma escrita que consegue mostrar as misérias humanas de forma tocante. Consegue mostrar os seres humanos como eles são.
O filho de mil homens consegue criar histórias que nos comovem. Sem realizar apelos, constrói narrativas em que os temas são caros à humanidade de uma maneira totalmente compreensiva, pois estão perto de nossa realidade. Acredito, assim como outros leitores, que Literatura se faz com temas que nos fazem pensar sobre o nosso estado de ser humano e de nos compreender em meio ao mundo, à Natureza. E que quando nos deparamos com o fundo de nós mesmos, quando começamos a ‘cair para dentro de nós’, como dirá o autor, é que percebemos o que é a realidade.
Realidade que é sentida por Crisóstomo, que assume a tristeza de aos 40 quarenta anos não ser pai. Morando sozinho, acompanhado apenas de um grande boneco de olhos vermelhos, não consegue arranjar ninguém que lhe ensine o que é o amor ou a felicidade.
Essa realidade fere outros personagens como a anã, que mesmo sendo menor que as outras mulheres de seu povoado é mulher tão quanto elas. Ela, que tinha uma grande cama de casal e que era sempre visitada pelas mulheres hipócritas, teve um filho que veio a ter como tio o Antonino, que por sua vez não teve pai, e que por não ter tido um pai em sua infância acreditava que isso o fazia ser como era.
Já Camilo, que foi parido pela anã, que ficou sendo sobrinho de Antonino, ficou desfavorecido, mas por pouco tempo, até que conseguiu dois pais que lhe cuidassem das ideias. Um limitou o olhar do horizonte em vista do mar, mostrando-lhe o preconceito desde sua inocência. O outro ensinou que preconceito nenhum é o bastante para que não possamos querer bem aos outros e que assim como o mar, que aparenta ter um fim, não há fim para amar o próximo.
E Isaura, a pobre mulher que não teve sorte para o casório, mas que teve a sorte de casar com o filho de Matilde, homem de trejeitos imorais que quase lhe levara a falência dos sentidos perante a vida vivida, também não sabia o que era amar e pensava que amar era a espera, assim como Crisóstomo. A espera de saber o que poderia ser o amor. Ela sofria com os olhares alheios, apenas por ser solteira e por nunca ter tido homem algum consigo, além daquele que a enganara profundamente usando o amor como argumento.
Todos esses personagens sofrem de solidões e de marasmos do ser. O descaso que possuem consigo vai se desfazendo no momento em que um necessita do outro para que a vida passe de maneira menos áspera.
É a partir dessas relações, que de início podem parecer confusas como um pequeno redemoinho marítimo, que se fundamenta a narrativa de O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe. Homens e mulheres são desnudados incessantemente numa desarmonia durante as páginas do livro. Aos poucos, podemos perceber de que forma o caos se organiza na sociedade em que vivem esses personagens.
A felicidade é algo praticamente desconhecido para eles, pois não conhecem sequer o amor. Eles não sabem o que é isso e nem sabem se é possível sentir felicidade. Os personagens ‘hugoanos’ são de extrema instabilidade consciente. Sabem que podem ser o que desejam ser, mas têm a consciência que a sociedade os oprime e que isso é difícil de ser vencido. Perdem-se em seus pensares, pois não têm a quem se segurar. São como barcos instáveis em meio ao mar tranquilo, que desconhece as previsões do tempo.
Daí parece querer mostrar, o autor, que é possível, mesmo nessa sociedade caduca, totalmente desarmonizada, viver em harmonia com nossas diferenças. Esses personagens que caíam para dentro de si, quando estavam sozinhos, aprendem a dar a mão uns aos outros. Aprendem que para viver um pouco mais devem cair unidos e que essa queda se faz necessária, pois só assim será possível estar ao lado de quem ama.
Os personagens ‘hugoanos’ são homens perdidos. Assim como eles, tantos outros se fazem presente nesse mundo que parece não conceber pecado algum, ao mesmo tempo em que comete os maiores atos de atrocidade. Mais uma vez, percebo que a questão de se entender mais humano, de se sentir mais existente é o que fundamenta os grandes escritores. Sendo os personagens filhos de mães e de pais que muitas vezes não são conhecidos e que depois virão a ganhar novos pais e novas mães e novas famílias, a família aqui parece ser o essencial. Não no quesito sanguíneo ou amoroso. A união que nasce, no livro, por trás de uma cortina espessa de preconceito entre os próprios desvalidos é o que faz materializar o amor nas páginas de um pequeno povoado, à beira de uma praia.