A coisa não-Deus, de Alexandre Soares
Anos atrás, assisti a uma palestra de um especialista em viagens astrais chamado Wagner Borges. Confesso que me lembro de pouco do que foi falado ali. Lembro de duas coisas apenas: um tal cordão (ou fio) de prata e supostas ocorrência de viagens astrais registradas na bíblia. Do primeiro, diz-se que é o cordão (ou fio) que liga nossa alma ao nosso corpo físico quando aquela, durante o sono, sai por aí desbravando novas paragens. O cordão (ou fio) aparece pelo menos uma vez na bíblia, em Ec. 12,6:
Antes que se rompa o cordão de prata e se despedace a taça de ouro, quebre-se o cântaro na fonte e se parta a roldana da cisterna, então o pó voltará à terra onde estava, e o sopro de vida voltará para Deus, seu autor.
Essa pequena introdução serve apenas para dizer que o livro de Alexandre Soares Silva, A coisa não-Deus, é sobre uma viagem astral. Uma não, algumas. O cordão (ou fio) de prata logo aparece para nos mostrar isso:
Não me lembro direito do que conversamos; lembro que ele levantou a camisa do pijama e mostrou um finíssimo fio que saía do seu umbigo e atravessava a janela, sumindo no céu azul, como o fio de uma pipa; era o fio astral que o ligava ao seu corpo adormecido em São Paulo. Pela primeira vez reparei no meu próprio fio de prata, o que me espantou. Rimos.
A cena acima se dá entre o narrador e Júlio Dapunt. Ambos estão em plena viagem astral. Estão, nada mais nada menos, no Paraíso, numa região particularmente agradável, chamada Quaresmeiras Roxas. Terra de estetas, de espíritos refinados, afeitos aos prazeres e frivolidades. Ambos, narrador e Júlio, estão ali porque os anjos têm assuntos importantes a tratar com eles. Júlio tem um defeito, um defeito na alma: ela vai morrer. Ao contrário de todas as outras, eternas, a de Júlio morrerá tão logo seu corpo morra. Os anjos decidem que ele tem o direito de saber de sua condição. Já o narrador é levado ao Paraíso para ser o biógrafo de Júlio, para registrar a história dessa alma incomum.
Em troca do trabalho, o narrador ganhará uma casa em Quaresmeiras, bem ao lado de Chordelos de Laclos e Grace Kelly. Nada mal. Nada mal mesmo. Tanto que o narrador preocupa-se mais com a vida e os tipos de Quaresmeiras do que com seu objeto de estudo. Registra mais a vida dos anjos como Cupra que, bêbado, se transforma em Casmiros. Ou Pul, o anjo que passa séculos em reflexões abstratas e delega todas as tarefas convencionais aos seus muitos secretários, como Paulo, que se ocupa do caso Júlio Dapunt. Ou ainda Débora, amante de Cupra e amada pelo narrador. Ou o sensual e voluptuoso Qayitz.
A Júlio fora prometido uma vida de prazeres até a sua morte. Orgias, festas, jantares, celebrações. Era a forma de pedir desculpas por esse pequeno inconveniente. Mas, afinal, de quem era a culpa pelo defeito na alma de Júlio? De Deus? Questionando os anjos sobre a existência suprema, o narrador fica sempre com a mesma resposta: Deus? Nunca vi.
Anjos ateus, hedonistas, materialistas. A igreja em Quaresmeiras Roxas chama-se Igreja do Sagrado Mimo. A primeira virtude pregada é a frivolidade. A segunda, a petulância. Nada de espíritos ordeiros, disciplinados, diligentes. Aqui vale a suave indolência, o doce ócio, a contemplação estética. Por isso o narrador foi o escolhido dos anjos para cumprir a função de biógrafo da alma defeituosa. Ele possui todos esses predicados. O prazer, para o narrador e para os anjos “quaresmeiros”, é superior à verdade. A verdade é o prazer. E por ser mais prazeroso, Pul cria um pensamento que identifica Júlio Dapunt a Deus. Júlio era conhecido por todos como a coisa não-Deus, justamente porque a idéia da morte de Deus seria inconcebível. Tudo era Deus, menos ele. Pul inverte o processo e diz que Júlio Dapunt era Deus porque somente ele foi capaz de passar do reino da existência ao da inexistência. Esse movimento, único na história do mundo, só poderia ser feito por um ser divino.
Nada disso é verdade, claro. Mas dá prazer. Prazer que Júlio, em sua medíocre vida terrena, desejava ardorosamente e não tinha. Era um garoto tímido, estudante de letras na PUC/SP. Sentia que era um gênio, só não sabia exatamente em quê. Queria ser visto, mas passava quase sempre despercebido. Queria montar uma banda de rock para transar com as menininhas da faculdade. Não montou. Um garoto cheio de ambições frustradas, cheio de sonhos turbulentos e incompletos. Um garoto comum. Só era incomum no Paraíso. Só era especial por um defeito.
O reconhecimento só lhe vem depois de morto. Um memorial é feito em sua homenagem. A idéia “puliana” de que Júlio era Deus já era aceita por alguns, que agora o adoravam. Teria algo da idéia de sacrifício esse reconhecimento espiritual de Júlio Dapunt? A única alma que morre no mundo merece ser adorada?
Se Júlio era um menino comum, de desejos comuns, o narrador era um homem refinado. Não gostava de seu emprego de critico cinematográfico. Gostava mais de sentar-se em sua poltrona, diante da lareira e ler livros de Lord Dunsany. Como o próprio diz, gosta de ser escapista, e seu escape era a cultura e os pequenos prazeres da vida. Por sorte (sorte?) o narrador é plenamente consciente de si e de suas motivações. Enxerga esse escapismo erudito, esse verniz cultural que tanto preza como uma proteção à aridez do mundo e como uma das formas possíveis de se levar a vida. Nenhuma alma mais afim ao espírito dos espíritos de Quaresmeiras Roxas.
A consciência, ou melhor, a autoconsciência do narrador faz com que o leitor perceba como elementos de sua personalidade algo que poderia passar por um defeito ou deslize. Por exemplo: logo no início do livro, ao falar do alto refinamento estético dos habitantes de Quaresmeiras, o narrador diz que se você usa a palavra “lúdico”, você não faz parte de Quaresmeiras, e complementa:
(...) se um espírito minimamente refinado fala sério a palavra lúdico, no momento em que o fonema |C| é pronunciado sua boca arrebenta, seus dentes explodem...
O erro aí é que à letra C corresponde o fonema |k|. Parece ser um erro, estranho a um espírito tão refinado como o do narrador. Porém, muitas páginas mais adiante, o próprio narrador justifica seu deslize, ao tentar registrar, e não conseguir, uma fala de Débora:
Acho difícil descrever a maneira exata com que ela disse essas palavras, sinuferes e sinuferinhos; ainda mais porque não tenho nenhum treino especial em transcrição fonética.
Essa mesma autoconsciência é percebida em relação a Júlio Dapunt. O leitor sente que Júlio é tratado meio à distância, meio secundariamente pelo narrador. O ambiente e os anjos de Quaresmeiras chamam mais sua atenção do que o condenado Júlio. O narrador, mais uma vez, não omite suas inclinações:
Pensava como seria estar com Deborazinha, pensava nos livros que Lord Dunsany devia ter escrito depois da morte, pensava na minha casa na Rua dos Figos Caídos (Nemyie Mamalemo Mur), pensava no futuro e em tudo o que é grande e brilhante e bom. Não conseguia pensar em Júlio Dapunt.
Consciente de suas falhas, consciente de sua inclinação levemente esnobe, o narrador termina consciente também de que entre ele e Júlio não há uma distância tão grande. Ambos, homens banais no meio de anjos perfeitos, sofrem e sentem as mesmas coisas. Não foi sem certo espanto que o narrador, homem refinado e enfastiado com o mundo, se viu aparentado a Júlio Dapunt:
Senti, também – aquele sentimento dapuntiano, que eu não havia sentido com freqüência ao longo da minha vida -, uma consciência súbita das minhas limitações, dos meus pneuzinhos, da minha pele oleosa na testa, da minha mente lenta e sonolenta. Tentei superar essas limitações endireitando o corpo e olhando com arrogância; coisa que eu já havia visto Júlio Dapunt fazer. Júlio Dapunt havia me dito uma vez que, não gostando do formato da própria cabeça, nem dos pulsos, que achava muito finos, admirava muito e invejava o formato das cabeças das outras pessoas, e os pulsos grossos dos outros homens (humm...). Eu invejava a alegria de Débora, o charme de Sinufer, a tranqüilidade de Cupra, o corpo e a agressividade de Qayitz. Eu e Júlio Dapunt, naquele mundo de movimentos precisos, éramos uns proletários. Percebi que o meu ciúme de Débora com relação a Sinufer havia me aproximado mentalmente de Júlio Dapunt, como se eu estivesse, moralisticamente, desejando que Deborazinha demonstrasse menos alegria e mais luto. Fiquei um tanto amuado.
O trecho é longo, mas revelador. O Paraíso e seus anjos alucinantes, perfeitos, talvez não seja esse bálsamo absoluto para a alma. Ao contrário, talvez seja o lugar onde as comparações nos sejam sempre desvantajosas. Como competir com anjos? Como competir com as almas ultra-refinadas de Quaresmeiras Roxas?
O defeito de Júlio Dapunt lhe garantiu uma eternidade entre os eternos. Um reconhecimento inolvidável. O narrador, por sua vez, recebeu de presente, além de uma casa, uma crescente autoconsciência de suas limitações, fragilidades, indolências. Hermelindo, pai de Paulo, secretário de Pul, avisa o narrador ao deixar Quaresmeiras para ir fundar uma outra cidade baseada na racionalidade: não deixe que o deboche e a ociosidade deste lugar influenciem você. Aviso inócuo. O narrador também é consciente que está preso ao estilo e às virtudes de Quaresmeiras Roxas. Para o bem e para o mal.
Dizem que muitos deuses têm aparência humana porque o homem os criou. O Paraíso criado pelo narrador, ou pelo menos a parte do Paraíso que é Quaresmeiras Roxas, se afina perfeitamente àquilo que ele julga bom. Prazeres, frivolidades, deleite estético, charme. O que nos leva a perguntar: será que o narrador não criou uma aventura astral que lhe espelhasse o espírito? Será que ele não criou um Paraíso para si, um em que ele seria um tipo comum e bem aceito? Será que Júlio Dapunt é uma espécie de redentor dos meninos comuns, desses que nos passam quase despercebidos todos os dias?
Alexandre Soares Silva fez um livro incomum, talvez raro, dentro da literatura contemporânea brasileira. Foge do realismo habitual. Troca-o por força imaginativa, fantasia, criação. Seu narrador aprende algo, muda de vida, de hábitos, de percepção do mundo? Não. Melhora de seus incômodos, de seu escapismo, de seu esnobismo? Não. Ele planeja continuar levando a vida entre livros e pequenos prazeres. A única coisa que ganha, afinal, é uma autoconsciência crescente de suas limitações. Além, claro, da oportunidade de fazer um belo livro, seu ingresso no Paraíso.
Cahoni Chufalo, formado em Letras, com pós-graduação em critica e curadoria de arte. Fez a curadoria das exposições Memória Imprensa, em Outro Preto e Figuras Recorrentes, em Novo Hamburgo.