31 de agosto de 2016

A poesia de Fernando Abreu

Fernando Abreu é maranhense de São Luís. Viveu na cidade de Grajaú, interior do estado, até os 13 anos. Durante cerca de dez anos editou a revista de poemas Uns & Outros, ao lado de outros integrantes da Akademia dos Párias, grupo que agitou a cena literária na capital maranhense entre o final dos 80 e meados dos 90. Tem quatro livros de poemas publicados, sendo o mais recente Manual de Pintura Rupestre (7 Letras, 2015). Antes vieram Aliado Involuntário (Exodus, 2011), O Umbigo do Mudo (Clara Editora, 2003) e Relatos do Escambau (Exodus, 1998). Como letrista, tem parcerias com Zeca Baleiro, Chico César, Marcos Magah e Nosly, entre outros. Tem poemas publicados nas revistas Germina, Modo de Usar, Sibila e Poesia Sempre e no Blog do Antonio Cicero. Mantém o blog Homem Comum, onde publica basicamente poemas.

 

burroughs na amazônia

replicando o pajé que soprou
a fumaça do tabaco
sobre o vinho bárbaro
que enfim se revelava
a seus lábios de navalha
william s. burroughs soltou a névoa
do mata-ratos que usava desde que
trocara o deserto mexicano
pelas vielas da amazônia
sobre a cuia que o poema imagina de barro
ou velha caneca enrugada
fim da busca pelo barato definitivo
que deveria curá-lo da doença da heroína

o gesto ritual reencenado
pode ser visto como um espasmo
de ironia senhorial
na mente do junkie egresso de harvard
ou como a silenciosa expressão
do mais puro júbilo
Inteiramente impossível
em outras circunstâncias.

 

estrela

mudei dali vai fazer um ano
e agora quase não a vejo mais
discreto milagre elétrico que acende a noite
na torre da igrejinha católica perto da padaria
é um alívio saber que ela continua lá
com sua fraca luz azulada
assombrando a penumbra perene
brilhando para os cachorros abandonados
para as garotas voltando da aula noturna
depois de um dia inteiro nas galés domésticas
para os casais conversando em voz baixa
para os crentes de bíblia na mão e pecado na cabeça
para os zumbis de crack amontoados na calçada
partilhando sua ceia de álcool barato
esta noite ela se acendeu mais uma vez
não tocou o coração da usura
não alterou o humor do mercado
nem ofuscou a fama do famoso
foi quase um pedido de desculpas
por fazer tão pouco
para manter o mundo de pé
o linchador
bati um pouco sim
o clima do momento
qualquer pai de família faria
agora não sei
quase não encostei nele
o pessoal barbarizou mesmo
ele estava muito doido
podia matar qualquer um ali
eu não linchei ninguém não
queria ver se fosse você
pensa só na sua família na hora
acho que nem acertei ele
acho que nem era quase um garoto
acho que nem parecia
com meu filho mais novo
linchador o caralho
linha de fronteira

poemas que não recusam nada
nem mesmo ser um poema
quando isso totemizou-se em tabu
anti-poema acima de tudo a não música
quando a fome onívora é teu nome de guerra
puta protéica pós-nuclear
barato definitivo quando nada mais abre porta alguma
porque apenas ficamos sentados nas calçadas
com raiva do sol
partir pra cima do poema desarmado até os dentes
nem sempre a luta é justa
quase nunca se leva a melhor
sobre quem?
esse é o quadro o quadrado
o poema é o ringue não o punch