19 de julho de 2016

A resistência do pixo

Contra a burguesia e a hipocrisia, a tinta risca a parede branca, o muro liso: a cicatriz de uma cidade desigual e excludente. A resistência por meio de uma forma única de expressão. Não é grafite, é pixo. Uma marca, um símbolo. O atestado que berra: estamos aqui, existimos, a cidade perfeita não existe, e todo o ambiente urbano carrega dezenas de níveis de significação.

Propor uma discussão sobre o caráter artístico das manifestações de rua é, no mínimo, ingênuo. Se a arte deve ser crítica, se deve provocar impacto, se deve desestabilizar o que está posto, se deve constituir uma experiência estética, se deve chocar o cidadão comum, se deve chamar atenção (para algo), se a arte deve ser sangue e coração, o pixo é arte.

A tinta mancha o córrego urbano com honestidade e autenticidade, as artérias pintadas – marcadas – pela lembrança da pobreza e da exclusão, que existem no silêncio de cada um de nós: passamos ao lado do corpo jogado sob a marquise, em frente à vitrine, ou ao corpo sem rosto que vaga, invisível.

É uma selva, a cidade. São muros, prédios, janelas, esca(la)das, todas superfícies adequadas. O pixo não é uma opção: é uma natureza, está no sangue a necessidade de se fazer ouvir pelos olhos. É uma comunicação fechada, feita para agredir, para atacar a sociedade. É também uma máscara, sobre a qual é necessária a reflexão e compreensão: aprende-se a conviver com aquilo que é distinto.

Foto de Giovana Anschau

Foto de Giovana Anschau

 

Exibindo anschau3.jpgA beleza do pixo deve ser sentida, sim, mas, acima de tudo, deve ser compreendida, observada com cautela e dedicação. O traço proibido carrega uma força, uma violência que apenas sua subversão pode transmitir.

A arte está nos museus, obviamente está. Mas do lado de fora das catedrais há o mundo. E qual obra de arte partiu de algum lugar que não fosse mundo? O pixo é belo por não querer ser arte, o pixo é belo por levar o corpo do artista a um extremo desconhecido, que desafia os obstáculos mais cruéis e se impõe, faz a sua marca, tatua uma esquina, risca o plano da ordem, do previsível.

Ninguém aguenta dias todos iguais. A originalidade do símbolo, um brasão estampado em meio a tantos outros brasões, logomarcas de empresas, nomes de lojas, restaurantes, farmácias. Há um processo: nada é aleatório.

A influência para o movimento vem do heavy metal, do punk rock, do harcore; dos símbolos germânicos, escandinavos, dos primeiros alfabetos europeus; símbolos de difícil decifração, colocados pela cidade sempre com um significado, sempre dizendo ei, você, foda-se, sem que o passante comum os entenda, mas fazendo com que o passante comum se sinta alvo daquela violência, do contraste entre o plano e o relevo, entre o certo e o errado.  

O vício em desvirtuar a ordem, em subverter o sentido da tinta. A adrenalina da arte como crime e do crime como arte. São Paulo é o coração pulsante dessa manifestação potente e original, um mosaico de tintas, de ideias: vozes em uma bela desarmonia, compondo dissonâncias e sinfonias. É a voz da periferia que penetra nas cidades e encontra seu caminho, a favela grita em praça pública, direito é para todo mundo, não apenas para quem tem o dinheiro, a gravata, o mercedes.

A voz do povo está escrita nos muros. O pixo é a arte do limite, da tênue linha entre a Terra e o Céu, do perigo, da franqueza. Arte que ilustra a metrópole, repleta de ódio, de egoísmo, de perversidade.

Arte de coragem, de fúria e explosão, que reza: estamos todos aqui.