1 de julho de 2016

Quando eu li Antonio La Carne

Quando eu li Antonio LaCarne...

 

Quando eu li Antonio LaCarne percebi, com toda clareza, que sempre que o amor acaba apenas para um dos lados, ainda é possível manter-se fiel a ele através do rancor, do ressentimento, do desejo de vingança – e que sofrer por amor é melhor que não amar, que se tornar insensível ao amor, ou indiferente. Admiro as mãos vazias, de pedinte, com as quais LaCarne escreveu seu Salão Chinês (publicado pela Patuá em 2014), pois, segundo a mística teológica, mãos vazias são as únicas que podem ser preenchidas, e as do escritor esvaziaram porque transbordaram, como um copo com vinho no qual se despejou água de uma jarra fria até que ficasse vazio, até que não sobrasse nada, sequer a embriaguez.

Sim, mas Salão Chinês fez mais por mim que apenas me dar algumas horas de melodramas para uma boa leitura.

Esse livro fez o mais difícil; aquilo que, segundo Einstein, é mais complicado que desintegrar um átomo.

Explico: cresci com os dois pés fincados em uma cultura machista. Na escola, fazia piadinhas sobre “afeminados”, e brincadeiras sem graça com qualquer garoto que demonstrasse o menor indício de delicadeza. Repetir esse tipo de comportamento era necessário para qualquer moleque da minha idade (falamos da safra de 1977) que quisesse se sentir inserido, parte de um grupo. Essa ideia de “irmandade de valentões de kichute” só era possível se acusássemos o “diferente”. E o “diferente”, para nós, era sempre o homossexual. Achávamos que aceitar um homossexual entre nós seria notado exteriormente como indício de fraqueza. Pelo mesmo motivo, na Roma Antiga, as colunas militares de César expulsavam de suas fileiras os homossexuais passivos.

Mas apesar de estar culturalmente “autorizado”, nunca fui homofóbico, o que depõe a favor da tese de que não é a cultura que cria o homofóbico – ela apenas promove as condições para que a homofobia floresça. Não vou discorrer sobre isso: há muitas teses na área da psicologia que fazem essa ligação entre o ódio a homossexuais e os desejos reprimidos. O que posso dizer é que eu tinha atitudes homofóbicas, e estas podem ser corrigidas com o esclarecimento. Já a homofobia necessita de leis duras e específicas.

Uma de minhas atitudes homofóbicas: enxergar a homossexualidade como um “desvio”, e me orgulhar de ser “condescendente” com ela.

Por exemplo: nunca acreditei que pudesse haver uma grande história de amor entre dois homens. Na minha cabeça, algo assim estaria restrito ao modelo clássico homem/mulher.

Mas Salão Chinês provou que eu estava errado e que, para além das questões de gênero (e o gênero é apenas uma bandeira arbitrária fincada sobre uma base biológica), qualquer amor professado nos nivela a todos, irmanando-nos em uma única comunidade de felizes sofredores. De modo que não existe amor heterossexual, homossexual, bissexual, etc. Existe O AMOR – e abaixo dele todos os animais que amam. E isso aprendi lendo LaCarne. Daí a, a partir dessa constatação, aceitar a homossexualidade não com condescendência, mas com naturalidade, foi um pulo.

Só a Arte, em especial a Literatura, é capaz de nos mover assim em direção ao outro, dissolvendo em nós nossos preconceitos e nos deixando mais ricos, mais leves, com menos certezas ou ideias prontas sobre o mundo. A leitura é um processo sério de empatia. Aceitar o “igual” é sempre fácil. Com essa aceitação, aceitamos mais nossos espelhos que qualquer outra coisa. Compreender e aceitar o discurso do outro, do diverso, é o mais difícil, por isso mesmo o mais enriquecedor.

Precisamos de mais livros como Salão Chinês, para evitar que monstruosidades como o massacre de Orlando voltem a acontecer. E no Brasil já temos o nosso massacre de Orlando diário.

De resto, é como escrevi no prefácio que tive o privilégio de escrever para o livro de estreia de LaCarne: a ideia de que esse salão chinês “transforma o kitsch em epifanias, como uma Elizabeth Taylor tomada pelo espírito de Rimbaud, e que ainda não houvesse se decidido entre Medeia e Sylvia Plath”.