Carneiros estranhos e mágicos
O estranhamento é um efeito difícil de ser utilizado com presteza. Por outro lado, o weird, quando bem feito, funciona como um pilar de verossimilhança que aproxima a história da natureza surreal que a vida por vezes assume. Isso é parte da fórmula que orienta autores notáveis como Gabriel García Márquez, Salman Rushdie, Julio Cortázar, Franz Kafka, e, no Japão atual, Haruki Murakami.
“Caçando carneiros” é o terceiro livro de Murakami (lançado pela primeira vez em 1982), e carrega uma grande característica: se for a sua primeira leitura, você vai ficar deslumbrado. Não há sensação mais precisa para resumir a experiência de leitura (não por acaso o livro estava esgotado até ser relançado pela Objetiva). Do princípio ao fim a história é tão incomum, mas tão legítima e humana que as páginas lhe acorrentarão à aventura. Ademais, o estilo do autor conta com descrições precisas, metáforas empolgantes, exposição do cotidiano pós-industrial japonês e puro surrealismo literário: imagens oníricas, fluxos de consciência labirínticos, personagens niilistas e/ou autodestrutivos, situações incomuns (algumas delas explicadas por mágica) e certa dose de omissão de informações ao leitor.
Logo no início o niilismo ostensivo do narrador-personagem (aliás presente em grande parte do livro) confunde. Ele começa contando sobre três mulheres aparentemente sem conexão alguma: a primeira era um caso antigo e está morta; a segunda é sua ex-mulher, ao qual não sabemos todos os componentes que culminaram para a separação do casal; e a terceira é sua atual namorada (muito importante para a trama), que possui três empregos: prostituta, revisora em uma pequena editora e modelo de orelhas em peças publicitárias. Aliás, as orelhas da personagem são mágicas (concedem certos poderes de adivinhação e presciência).
A história se desenvolve mostrando as fragilidades do protagonista que não se vê inserido no emprego de publicitário ou na constituição de uma família legítima. Ele adquire o gosto por sua decadência e busca representar um Japão em que milhares de pessoas procuram genuíno carinho, mas só encontram relações impessoais de sobrevivência. Quando a normalidade passa a ameaçar a história, nos deparamos com a grande guinada: um homem estranho aparece e ameaça a empresa do personagem principal devido a uma foto publicitária em que carneiros são mostrados em um prado cercado de montanhas.
O tom da ameaça surpreende devido à banalidade da imagem. Contudo, o homem estranho chama atenção para um carneiro com uma estrela nas costas e passa a explicar que aquele animal é mágico. Assim como o narrador, o leitor se depara com informações que transitam entre o verossímil, o mito e a piada. Ao fim, o homem estranho manda que o narrador encontre aquele carneiro especial ou a empresa dele e de seus amigos será destruída.
A partir daí a história se torna uma jornada épica. O narrador e a namorada de orelhas perfeitas e mágicas tem que encontrar um carneiro especial no meio de todo o rebanho ovino do Japão. A única pista é a foto do pasto em uma região montanhosa e desconhecida por todos. O autor da imagem é um amigo do personagem principal, um homem solitário que resolveu sair de sua cidade natal e viver como ermitão pelo país, sem endereço ou telefone para recados. A sequência de pistas incertas insinua o desastre na jornada pelo carneiro como quem vislumbra um céu continuamente tempestuoso sem mais se lembrar do sorriso do sol.
Às duras penas, novos personagens estranhos cruzam o caminho do narrador e o conduzem até um local onde o carneiro de costas estreladas pode ser encontrado. A construção desses personagens surreais, meio incríveis e passionais é um dos grandes pontos fortes do detalhismo do autor. Eles carregam o tom despretensioso de uma conversa informal, mas ao mesmo tempo são determinados em suas buscas, mesmo que isso signifique contemplar o nada indefinidamente. Outro ponto positivo é a riqueza de detalhes que Murakami traça de seu país na transição do outono para o inverno.
Ao longo da narrativa, histórias de amor, de forte amizade e metáforas surrealistas que exercem conforto e curiosidade no leitor. A mágica também está lá (não somente no carneiro), mas nas bordas, entre as cenas, no discurso indireto do narrador-personagem e nas orelhas de sua namorada. Ao fim, respeitando as características desse tipo de narrativa, a história parece não resolver todos os nós que encontramos; ela se assemelha à vida ao deixar as coisas meio indiretas, incompletas, como se coubesse ao leitor uma nova interpretação em algum ponto do futuro que revelasse outro significado por trás da trama, mesmo que isso nunca de fato aconteça porque a trama ainda está desenvolvendo-se.